Infame

Política e Polarização, parte 3: “Juízo Final” (ou “Bem vs. Mal”)

"Direito a ter opinião é um direito sagrado, subproduto de um estado democrático, e não duvide que seus pais ou avós já tenham tomado bala de borracha por causa dele. Tão sagrado quanto o direito de mudar de opinião, algo que deveria ocorrer mediante diálogos cheios de respeito, e não por imposição ou troca de ofensas quanto à capacidade intelectual de alguém".

Por Matheus Machado |  26 de maio de 2017

De camisa polo azul clarinha e justa, cabelos loiros e olhos verdes, o cara poderia muito bem ser a encarnação do Ken da Barbie. “Se a Dilma sair, o que você mais espera para o Brasil?”, perguntou a repórter. Ele começou respondendo alguma outra coisa e logo depois completou: “Eu quero poder ir a um supermercado e encontrar iogurte na prateleira”. E em seguida fez cara de sério, como uma espécie de militante pelo direito constitucional ao acesso a iogurtes de ameixa com baixo teor calórico.

De camiseta vermelha estampada com o rosto de Che Guevara, o cara tinha uma barba que parecia ter sido cortada pela última vez na presença do próprio Che, 60 anos antes, em Sierra Maestra. “Foi golpe ou impeachment?”, perguntou o repórter. E depois de ouvir a resposta que esperava, deflagrou a segunda pergunta: “E qual é a diferença entre golpe e impeachment?”. Sorrindo encabulado e olhando para os amigos que o cercavam em busca de uma pista, o interrogado calou-se: nem sabia por onde começar.

Ambos os vídeos eram produzidos por veículos midiáticos que não faziam questão de esconder seu posicionamento ideológico (algo que, por si só, não é necessariamente um problema). Jamais terei acesso ao material com todas as demais entrevistas realizadas naqueles dois dias, mas basta não ter nascido ontem para enxergar que tanto o Ken quanto o Barba foram escolhidos a dedo em meio a depoimentos de outros manifestantes, independentemente das eventuais coisas razoáveis que alguma outra pessoa de camiseta verde amarela ou vermelha também tenha dito nas mesmas ocasiões.

Bom, você já deve imaginar, deu no que deu: demorou pouco para que os dois vídeos fossem compartilhados por milhares de pessoas em suas redes sociais, absolutamente convencidas de que prestavam um serviço à nação ao fazê-lo, seguras de que o episódio era prova cabal quanto à falta de desenvolvimento intelectual de todos seus opositores (ainda mais quando esses opositores, reforçando preconceitos bastante disseminados, faziam um favor sendo loiros com cara de rico ou barbudos com camiseta do Che).

Pensei que dificilmente encontraria uma situação em que o ser humano pode ser tão baixo, tão descompromissado em encontrar a verdade. Ali olhando para a tela do meu computador eu senti vontade de desistir do Brasil. Não por culpa do Ken ou do Barba, tão vítimas de um mundo construído em torno da desinformação quanto eu, mas pelos editores daqueles vídeos e pelas pessoas que foram capazes de ver algum valor naquele material maliciosamente enlatado para dar a entender, sem nem ser íntegro o suficiente para fazê-lo de forma expressa, que discordar é burrice.

Covardes. Mimados. Para mim, não passam disso. Covardes porque fotografam apenas o pior ângulo de quem querem destruir. Mimados porque só entram em briga se for para ganhá-la, mesmo que seja necessário espalhar por aí que todos seus opositores são cópias do Ken ou do Barba.

Rebaixar para o terreno da burrice uma opinião só por ser diferente da sua não é só uma postura autoritária: é um ato fascista, em sua acepção mais finalística e não histórico-geográfica, assim entendida como a atitude de quem não está aberto a conhecer o seu próximo, a estabelecer com ele um diálogo franco.

Às vezes nos vemos pensando que, para existir diálogo, basta deixar a outra pessoa terminar de falar o que está dizendo e pronto: diálogo configurado. Mas isso está longe de ser suficiente. Simplesmente ouvir até o fim o que alguém tem a dizer não significa que você esteja escutando. Escutar não é só ouvir em silêncio, encenando um respeito protocolar. É ouvir obrigando-se a construir uma ponte de significado até aquilo que a outra pessoa está dizendo. É deixar seu próprio ponto de vista dormente quietinho num canto e abraçar-se àquilo que está sendo dito como se fosse um pedaço de navio em um naufrágio; ouvir considerando os princípios de quem diz, seus paradigmas, suas premissas filosóficas, de modo a tentar entendê-los ou, ao menos, respeitá-los. É esforçar-se para entender de onde vem aquele raciocínio, de onde vem a pessoa que o defende, as coisas pelas quais ela passou, os motivos que dão (ou tiram) sentido à sua vida. Dialogar, afinal, é algo que se faz muito mais pelo ouvido do que pela boca.

Você aí que chama o amiguinho de burro quando ele diz algo sobre a reforma política, sobre a previdência ou outros assuntos bastante cinzentos, aqui entre nós, o que você realmente sabe sobre tudo isso? 99,99% da população é pelo menos um pouco ignorante quando o assunto é política, câmbio, previdência, empregabilidade, inflação, assistencialismo, corrupção, etc., fato esse que confere a todos nós o automático direito de continuarmos pensando o que quisermos pensar, ainda que, diante de um hipotético trono da verdade absoluta, estejamos errados.

Direito a ter opinião é um direito sagrado, subproduto de um estado democrático, e não duvide que seus pais ou avós já tenham tomado bala de borracha por causa dele. Tão sagrado quanto o direito de mudar de opinião, algo que deveria ocorrer mediante diálogos cheios de respeito, e não por imposição ou troca de ofensas quanto à capacidade intelectual de alguém. Vivemos num mundo onde somos treinados para saber tudo; onde ignorância é um xingamento e não um estado. Nesse contexto, parece que trocar de opinião virou coisa de burro, de traidor, de quem se deixa levar. Eu, por exemplo, já fui contra cotas raciais em universidades, e os argumentos para sê-lo eram (e continuam sendo) bastante convincentes para mim. Hoje, porém, depois de experiências de vida pelas quais passei nos últimos anos, comecei a defendê-las, e os argumentos nos quais me baseio para fazê-lo são, e sempre foram, bastante convincentes para mim. Eu não era burro por pensar diferente de quem eu me tornei, nem fiquei burro por discordar de quem um dia já fui.

E como se não bastasse o risco de saírem por aí dizendo que somos antas completas, outra terrível consequência da marginalização da opinião alheia é submetê-la não apenas a um diagnóstico intelectual, mas também moral. É a partir daqui que passamos a correr risco ainda maior: sermos confundidos com o anticristo.

O mecanismo pelo qual isso acontece é simples e lembra muito o fenômeno anterior. Discorda-se tanto daquilo que está sendo dito que você pensa: se esse cara não for burro, ele só pode estar mal intencionado. E com base nessa lógica obtusa, sataniza-se a dissidência: porque quem discorda é ruim, é maligno, é do tipo que sacrifica e come criancinhas durante a noite.

Não que eu duvide da existência de gente ruim de verdade, profissionalmente ruim, que queira mesmo, com todas suas forças, que o seu próximo se exploda, mas estender esse perfil malvado a todo mundo que apresenta essa ou aquela característica superficial é inadmissível. As patrulhas da simplificação trabalham para nos convencer que todo rico odeia que pobre voe de avião ou que todo favelado tem queda para ser bandido. E ao darmos ouvidos a eles, retroalimentamos conclusões falsas sobre o caráter de milhares de indivíduos com quem nunca conversamos e jamais conversaremos: fulano? Ah, esse aí é um imbecil. Sicrano, vixe, esse não presta, espírito de porco.

Esquerda vs. direita. Capitalismo vs. socialismo. Burros vs. sábios. Bons vs. maus. Eles vs. nós. Percepções dicotômicas que dificultam a existência de diálogo e confirmam o ditado: o inferno são os outros. Ocorre que um elemento essencial ao diálogo é perceber que o inferno somos nós. Sou eu. É você. Ele corre em nossas veias capitalistas ou socialistas, canhotas ou destras. A culpa é sua, cara. Você é ruim. Ruim pra cacete. Você não sabe de nada. Pode dar dízimo na igreja, distribuir comida na rua, ser professor não sei aonde, e mesmo assim faz ou sabe muito menos do que poderia fazer ou saber. Sua ideologia não vai salvar o mundo; vai, no máximo e com muita fé, substituir problemas atuais por problemas antigos ou inéditos. Sozinho você não vai a lugar nenhum. Atualmente, se alguém conclama as pessoas para mais diálogo, mais compreensão, para que se entenda o lado do outro, vão chamá-lo de “isentão”, dizer que está em cima do muro, que não tem opinião. Que triste isso, cara. Até que ponto chegamos… Sem humildade e empatia não existe diálogo. E sem diálogo, nada vai mudar. Política é diálogo. E diálogo é ouvir. Sem isso, continuaremos sendo os nossos próprios infernos de estimação.

Confira aqui as partes 1 e 2 de Política e Polarização.

Matheus Machado

Matheus Machado

Matheus Machado foi advogado tributarista. Por algum motivo, gosta de frisar que foi e não é mais. Hoje vive para o Infame, projeto que idealizou por achar que observamos muito pouco a vida ao nosso redor e com isso acabamos ignorando grandes histórias. Depende de música para existir e tem uma queda especial por punk rock e hardcore, ritmos pelos quais começou a entender a importância do submundo, do esquecido, do marginalizado. Diz estar feliz, mas no fundo no fundo queria mesmo viver só para escrever.