Infame

Política e Polarização, parte 2: “Papai Noel” (ou “Socialismo vs. Capitalismo”)

Esse flerte liberal com ideais mais socialistas motivou o surgimento de outras escolas de pensamento a partir dali, como a social democracia, o liberalismo social e o socialismo liberal. Ou seja, se observarmos com cuidado o desenvolvimento do liberalismo, tantas vezes considerado o grande lastro ideológico do capitalismo, há inúmeros momentos em que capitalismo e socialismo se encontraram.

Por Matheus Machado |  01 de maio de 2017

“Papai Noel velho batuta, rejeita os miseráveis, eu quero matá-lo, aquele porco capitalista”. E depois vinha o refrão, cantado (ou melhor, gritado) em coro por toda a banda: “Presenteia os ricos! Cospe nos pobres!”.

A música era dos Garotos Podres, um clássico do punk rock nacional. Foi lançada em 1985, mas só fui ouvi-la nos anos 90, no começo da minha adolescência. Foi a primeira vez que senti um clima de rivalidade ideológica na minha vida. Ali naquele momento suspeitei que se, de um lado, o tal do capitalismo era um vilão a ser combatido, do outro lado devia haver uma outra força que serviria para opô-lo, algo que mais tarde eu reconheceria como o tal do socialismo. Depois disso passei a conviver com a clara impressão de que só poderia existir dois tipos de pessoas no mundo: as que acreditavam nas propriedades messiânicas do capitalismo, certas de que esse seria o único caminho para a liberdade, e as que atribuíam as mesmas propriedades salvadoras ao socialismo, certas de que esse seria o único caminho para a igualdade.

Exato, foi mais ou menos isso que acabei aprendendo: capitalismo e socialismo são forças que se repelem; seus organismos possuem um sistema imunológico incapaz de tolerar quaisquer resquícios um do outro; e se colocássemos um deles numa tigela e arremessássemos o outro em cima, nada faria com que se misturassem. Pelo contrário, ficariam cada um no seu canto segurando na sua borda, com as mãos tremendo por não aguentarem mais segurar, ambos fazendo cara de mau e rugindo entre si. Mas será que, na prática, as coisas funcionam assim mesmo?

Apesar de a primeira encarnação do capitalismo ter nascido muito mais como um modelo econômico resultante da falência do sistema feudal do que como propriamente uma doutrina ou algo organizado em termos conceituais, uns duzentos anos depois, no século XVII, bem mais crescidinho e coincidindo com a consolidação do liberalismo, o capitalismo enfim ganharia uma roupagem mais teórica, uma voz própria, e acabaria, digamos, “ideologizando-se”. O socialismo, por outro lado, já nasceu querendo falar, pronto para apontar caminhos e combater o capitalismo industrial do século XIX, num contexto histórico de graves tensões entre empregados e empregadores. Levando tudo isso em conta, realmente há motivos para dizer que um bem poderia ser a antítese do outro.

A dualidade por trás desse raciocínio, porém, nem sempre sobrevive ao mundo real, razão pela qual muitas vezes se esconde em livros, manuais e folhas de papel distantes da realidade em que vivemos.

Uma boa maneira de começarmos a questionar a narrativa que opõe capitalismo e socialismo como forças absolutamente incapazes de pisar no mesmo solo ou dividir os mesmos talheres é olhar para a origem do liberalismo, essa palavra que tanta gente adora associar ao capitalismo sem o devido exame histórico.

Pois bem, o liberalismo foi uma escola de pensamento surgida por volta do século XVII como uma resposta a governos autoritários. Apesar de nascer centrado em questões como liberdades religiosas e individuais, logo ganhou também um viés econômico, mediante a ideia de que as pessoas eram igualmente livres para gerir seus recursos como bem entendessem. E não é preciso estar muito atento para enxergar que essa visão teria bastante a colaborar para o desenvolvimento do capitalismo, um sistema econômico baseado na propriedade privada.

Contudo, se analisarmos alguns estudiosos dessa época, fica claro que os princípios do liberalismo também eram capazes de dialogar com o socialismo. Um dos principais filósofos liberais, John Stuart Mill, por exemplo, não via capitalismo e socialismo como sistemas opostos. Pelo contrário, acreditava no poder transformador do socialismo como ferramenta política de proteção de populações mais carentes e chegou a incentivar a criação de cooperativas de trabalhadores, algo que contrariava o sistema capitalista convencional.

Esse flerte liberal com ideais mais socialistas motivou o surgimento de outras escolas de pensamento a partir dali, como a social democracia, o liberalismo social e o socialismo liberal (parece trocadilho, mas não é). Ou seja, se observarmos com cuidado o desenvolvimento do liberalismo, tantas vezes considerado o grande lastro ideológico do capitalismo, há inúmeros momentos em que capitalismo e socialismo se encontraram. Isso ocorre nas empresas privadas autorizadas pelo governo da URSS e nos remédios gratuitos distribuídos a pessoas desfavorecidas via Medicaid pelo governo americano; ou na forma como, ainda hoje, países como Suécia, Dinamarca, China, Holanda ou Canadá administram (bem ou mal) seus estados.

Os acadêmicos que me perdoem, mas gosto de pensar que, se fosse uma pessoa, o capitalismo seria um egoísta, alguém despreocupado em posicionar-se, que prefere calar-se perante os problemas sociais e coletivos que vê por aí e que, diante dos dedos apontados em sua direção, só sabe lavar as mãos e dizer: a culpa não é minha não. Enquanto o socialismo seria aquele cara metido a intelectual e com uma veia artística, que fala bastante e fala bonito, sempre em voz alta, que atira argumentos para todo lado e acaba gabando-se de coisas que jamais fez, alguém que na primeira oportunidade apontaria o dedo para dizer: a culpa é só dele ali.

Nesse cabo de guerra para ver quem é mais culpado pelas injustiças humanas, sinto-me obrigado a levantar a pergunta: queremos mesmo depositar todo o futuro da humanidade nas mãos de um acomodado egocêntrico ou de um sonhador romântico?

Acho engraçado quando ouço um capitalista de carteirinha pedir, com ar de superioridade de um suposto vencedor da guerra fria, exemplos de países socialistas que “deram certo”. Nessas horas fico pensando em exemplos de países capitalistas que tenham, realmente, “dado certo”. Ora, nesse mundo regido pela lógica do capital, cerca de 800 milhões de pessoas estão passando fome. Metade disso está oficialmente deprimida. O meio ambiente agoniza e a maioria das pessoas vive para satisfazer desejos de consumir produtos dos quais não precisa. Isso significa mesmo “dar certo”? Há capitalistas que condenam a utopia socialista, mas não se dão conta de que incorrem na mesma dose de crendice ao imaginarem um mundo onde a mão invisível de um mercado absorvido por interesses particulares será capaz de distribuir oportunidades para todos, segundo o que gostam de chamar de “meritocracia”, outro nome para aquele tapinha nas costas de gente que foi usurpada por séculos e, a partir de um momento, ouviu alguém dizer: vai lá irmão, agora é a sua vez, é só batalhar que você chega lá.

Ao mesmo tempo, também acho engraçado ouvir socialistas convictos de que um dia seremos realmente tratados como iguais, mesmo que seja uma igualdade forçada, imposta na marra pelos detentores do poder que formam uma nova elite privilegiada e ainda assim orgulhosamente revolucionária. Talvez por acreditarem nisso é que evitam enxergar que, até aqui, todas as experiências de regimes socialistas revolucionários sempre desaguaram em ditaduras, em assassinatos de minorias e dissidentes que ousavam discordar ou criticar esses regimes.

É mesmo totalmente livre aquela pessoa autorizada a andar pelas ruas e a dizer o que bem entende, mas que, sem escolhas reais à sua disposição, está fadada a ser apenas um número dentro de um sistema pautado pelo poder econômico? Ou, por outro lado, existe igualdade de verdade quando uma pessoa recebe o mesmo tratamento oferecido ao seu vizinho, mas não pode manifestar seu direito de opinião? Existe liberdade sem igualdade ou igualdade sem liberdade? Sinceramente, eu não sei dizer.

Nesse contexto tão complexo, fico assustado com o grau de polarização com o qual nos acostumamos: se alguém faz uma crítica ao capitalismo, será automaticamente chamado de comunista ou de guerrilheiro, bem como aquele que critica algo do socialismo também será, de pronto, taxado de porco capitalista ou de coxinha. Sério mesmo que vamos continuar simplificando as coisas nesse nível?

O sistema capitalista, especialmente sua atual encarnação financeira, revela sua pior faceta e implora por mudanças contundentes. Acho que deve ter algo errado quando 80 pessoas têm um PIB de mais de 150 países, certo? Faz parte da equação capitalista depositar o poder nas mãos de quem tem mais dinheiro, e o perigo está no fato de que tais pessoas muito provavelmente colocarão seus interesses à frente dos interesses dos demais. Mas isso não necessariamente contamina a noção de liberdade. Culpar o capitalismo pelo desastre que é o mundo atual é algo tão simplista quanto culpar o cristianismo pelas Cruzadas, o islamismo pelo Al Qaeda e Estado Islâmico, ou mesmo o socialismo pela morte de milhões de pessoas assassinadas pelos regimes soviético ou chinês. Assassinatos esses que também não esvaziam a noção de igualdade. Doa a quem doer, todos esses “ismos” estão cheios de sangue em suas mãos. Capitalismo e socialismo não são necessariamente bons ou ruins, mas passam a ser um problema quando caem nas mãos de líderes autoritários, com fome de poder e riqueza a qualquer custo.

Às vezes tenho a clara sensação de que essas pessoas muito convictas do bom funcionamento de seus sistemas e ideologias alimentam a esperança de salvar o mundo com palavras mágicas e varinhas de condão. Desejam encaixar dentro dessas palavras enfeitiçadas todos os seus sonhos, apertando-os para fazer com que caibam; é assim que abraçam uma ideologia que reforça suas crenças, que as façam pertencer a um grupo, que afastem seus medos, que confortem seus sonhos.  Mas a verdade é que os belos princípios atrás da ideia de capitalismo e socialismo, a liberdade e a igualdade, são complexos demais para caberem dentro dessas palavras que escolhemos para simbolizá-los. Sim, palavras são apenas símbolos que tentam se virar para abraçar coisas muito maiores e mais concretas do que elas.

Capitalismo e socialismo não são conceitos estanques e absolutos. A maioria dos países capitalistas convive, em maior ou menor escala, com organismos e medidas que relativizam a lógica capitalista. Ao passo que a maioria das manifestações de estados socialistas também adotam práticas que aceitam a iniciativa privada. A coisa não é assim tão preta no branco. Princípios originados de ambos sistemas podem ser trabalhados em conjunto, harmonizados dentro de processos democráticos, desvestidos de capas conceituais engessadoras que continuam a nos dizer que só existem dois lados para tudo.

Vamos parar de odiar uns aos outros por causa de palavras. Ninguém é automaticamente bom ou mau por dizer-se capitalista ou socialista. Não passam de palavras, desesperadas para dar sentido a valores que jamais caberão dentro delas. Deixando narrativas ideológicas de lado, tudo que pedimos é comida na mesa, educação e saúde de qualidade. No fundo, a gente só quer ser algo próximo de um Canadá ou uma Dinamarca. Tão socialistas e tão capitalistas quanto eles. Lugares com doses suficientes de liberdade e igualdade, onde o Papai Noel tenha licença para atuar mas não esqueça dos mais pobres. Não acho que isso seja pedir muito.

Pela revisão e pesquisa, agradecimentos especiais à historiadora Regina Egger. Para acessar Política e Polarização, parte 1: “A Cagada” (ou “Esquerda vs. Direita”), clique aqui

 

 

 

 

Matheus Machado

Matheus Machado

Matheus Machado foi advogado tributarista. Por algum motivo, gosta de frisar que foi e não é mais. Hoje vive para o Infame, projeto que idealizou por achar que observamos muito pouco a vida ao nosso redor e com isso acabamos ignorando grandes histórias. Depende de música para existir e tem uma queda especial por punk rock e hardcore, ritmos pelos quais começou a entender a importância do submundo, do esquecido, do marginalizado. Diz estar feliz, mas no fundo no fundo queria mesmo viver só para escrever.