Jean Pierre chegou cedo à Assembleia naquela manhã de 1791. Era constituinte da Revolução Francesa e tinha uma queda pela moça que servia chá aos demais legisladores. Como não era nada bobo, resolveu sentar ali do lado em que ela costumava ficar. Seus amigos correligionários foram chegando e começaram a sentar do mesmo lado, para colocar o papo em dia antes do início da sessão. Não tenho a menor ideia se o tal Jean Pierre conseguiu conquistar a moça, mas suspeito que se ele soubesse da confusão que estava causando para toda a humanidade ao escolher entre o lado esquerdo ou direito daquele salão, talvez abrisse mão da sua paixão e preferisse chegar mais tarde só para não carregar essa culpa.
Esse Jean Pierre não existiu de verdade, mas às vezes fico imaginando como teria sido aquele dia no qual o primeiro dos jacobinos ou dos girondinos resolveu sentar no canto esquerdo ou direito daquela Assembleia. Talvez não o tenha feito exatamente por causa da menina do chá e sim porque lá batesse menos sol, mas seja qual foi o despretensioso motivo por trás da sua decisão, o fato é que, naquele dia, começávamos a dividir o mundo politicamente entre “esquerda” e “direita”, passando a conviver com um fantasminha que adora soprar em nossos ouvidos que sempre existem duas perspectivas diametralmente opostas para explicar as coisas que acontecem debaixo do céu.
Cientistas dizem que uma das maiores características que nos separam dos outros animais é nossa capacidade elevada de identificar padrões e deles retirar alguma conclusão. Uma bola é sempre uma bola para uma criança, mesmo que ela seja azul e pequena ou amarela e grande. A parte ruim disso é que esse mesmo atributo que nos liberta da mentalidade animal parece ser aquele que nos aprisiona dentro de um fetichismo por detalhes irrelevantes, uma queda por padronizar o impadronizável, algo que nos faz achar que o fato de alguém fumar maconha, andar de bicicleta, acreditar em um Deus com letra maiúscula ou usar gel no cabelo é suficiente para começar a defini-lo politicamente.
Em “The Social Animal”, David Brooks descreve muito bem a luta do ser humano contra essa máquina padronizadora que é o nosso cérebro:
“Ele não tem apenas conhecimento da sua ignorância, mas da sua fraqueza diante dela. Ele sabe que a sua mente vai agarrar o primeiro pedaço de informação que lhe cruzar o caminho e construir uma teoria universal em volta dele. (…) Ele sabe que a sua mente vai pegar a sua experiência mais recente e tentar impor as lições desse caso em um outro caso. (…) Ele sabe que ele vive com certos estereótipos de como a vida funciona em sua mente e que ele vai tentar encaixar as coisas que ele enxerga dentro deles“.
O que David está dizendo é que somos doidos por colocar as coisas em caixinhas, porque essas caixinhas são atalhos para conclusões mais fáceis. E quanto menor a quantidade de caixas, mais fácil é decidir em qual delas jogamos as coisas. É tentador. Só que também é mortal.
O grande pecado por trás da polarização política entre esquerda e direita é que ela assassina a diversidade. Ao dizer que o mundo é preto e branco, estamos matando o azul, o vermelho, o amarelo, isso sem falar no magenta, no feldspato, no vermelho-cereja ou nas outras cores menos populares que sequer nos damos ao trabalho de tentar assassinar, de tão marginalizadas que já são naturalmente. Agrupar pessoas entre politicamente canhotas ou destras para tentar compreendê-las é um expediente que reduz a complexidade humana a níveis amébicos.
Quantas vezes você já viu alguém tentar explicar a diferença entre esquerda e direita? A pessoa tenta, até que começa bem, mas vira e mexe vem aquela escorregada depois de dois ou três minutos. É um tal de dizer que a coisa deve ser definida pelo tamanho do Estado, pelo braço de ferro entre determinados princípios, pela garantia de determinados direitos a esse ou aquele grupo, dentre outros critérios muitas vezes utilizados de forma confusa, subjetiva e que dificilmente fica de pé.
Calma. Não estou dizendo que não há absolutamente nenhuma função para os termos “esquerda” e “direita” num contexto político. Torcendo o nariz, até reconheço que pode existir uma função, digamos, “organizadora”, “didática”, quase epistemológica, por trás dessa divisão. Uma função útil para viabilizar conversas de boteco ou diálogos em que a precisão comunicacional não seja assim tão essencial. Mas quando superestimamos a importância desse atalho linguístico simplificador de verdades, a ponto de torná-lo o grande balizador da lente pela qual enxergamos as pessoas ao nosso redor, aí a coisa já começa a feder.
O que quero dizer é que, na prática (e não há como negar o valor da prática em discussões políticas), essa propriedade “organizadora” acaba ajudando muito pouco, meio como se estivéssemos dividindo os humanos entre aqueles que têm uma tatuagem na panturrilha e aquelas que não têm; ou aqueles que gostam de jiló e aqueles que não gostam. Pra que? É aqui que entra em cena o bom e velho ditado: se não quer ajudar, pelo menos não atrapalha. E sim, essa visão dicotômica de mundo tem atrapalhado bastante. Nesse braço de ferro conceitual, apimentado com um quê de masturbação ideológica, sinto que muita gente tem mais preocupação em entender se essa ou aquela decisão é “de esquerda” ou “de direita” do que em entender se essa ou aquela decisão é capaz de colocar mais crianças nas escolas ou construir mais hospitais.
Esquerdista ou direitista, não somos só isso. Temos medo de altura, fomos violentados quando éramos crianças, distribuímos comida na rua aos sábados, espiamos o vizinho pela janela. Somos a soma disso tudo. Começar um juízo sobre alguma coisa tentando encaixá-la em uma dessas duas molduras é começá-lo já meio suspeitando onde se quer chegar, direcionando o olhar antes mesmo de analisar os elementos que te autorizam a chegar a alguma conclusão sobre essa tal coisa. É a morte do diálogo. E sem diálogo não existe pessoa, porque não sabemos ser gente sem os espelhos que são os outros indivíduos.
Discutir política, assim como qualquer outro assunto ridiculamente complexo, em cima de um eixo único no qual esquerda e direita são figuras opostas e excludentes das verdades normalmente atribuíveis à outra, de modo que a soma das opiniões de alguém faz com que ela esteja automaticamente mais para lá ou para cá em cima desse eixo único, é algo, no mínimo, muito preocupante.
Não existe um só eixo. Existem dezenas, milhares de eixos. Posso militar a favor de direitos humanos para criminosos, pauta normalmente atribuída à esquerda, e ser ao mesmo tempo favorável a uma política fiscal mais rígida, pauta normalmente atribuída à direita. Posso estar acompanhado de skatistas quando o assunto for esse aqui, ou de senhoras que organizam o bazar da igreja quando o assunto for aquele outro.
Esse tipo de simplificação é combustível para a alimentação de preconceitos, porque ao se rotular uma pessoa, você sai com a sensação de que já a conhece e, portanto, não precisa sequer ouvi-la, imputando a ela todos os pecados de seus antecessores que se encaixavam no mesmo fenótipo social, esses que também foram um dia rotulados da mesma maneira, lá no passado. Nunca a humanidade ganhará ao separar pessoas em apenas dois grupos, porque somos complexos e diversos demais para sê-lo. E é nessa complexidade que está a beleza humana.
Meus caros, mantenham suas opiniões à vontade. Podem continuar achando que isso é certo e aquilo é errado; que isso faz sentido e aquilo não faz. Este artigo não quer que ninguém mude de entendimento em relação a nada. É só um artigo sobre semântica, sobre o significado dessas duas palavras modestas que surgiram apenas para apontar para lados diferentes: para lá fica a direita e para cá fica a esquerda. Só isso. Chega de entender o mundo com a mesma preguiça de um cartógrafo que se dá por satisfeito ao dividi-lo com um único risco bem no meio do globo. Polarização política é um atalho perigoso para entender as coisas. Não dá para levar a sério um retrato que divida a humanidade somente em dois lados. A cada vez que alguém tenta explicar as coisas desse jeito, o pobre Jean Pierre arrepende-se lá na sua cova: que cagada, pensa ele, sozinho ou abraçado pela moça do chá, algo que jamais saberemos.