Junho de 2013. Todo mundo foi pra rua, e todo mundo se perguntava, da própria rua, por que é que estávamos na rua. Vinte centavos poderiam justificar tudo aquilo? O que se desdobrou a partir das manifestações puxadas pelo Movimento Passe Livre (MPL – não confundir com MBL!) é mistério para as cortes da História e da Sociologia. Muitos anos se passarão até que o fenômeno das jornadas de junho sejam decifrados. Mas foi na presença pulsante daquela pergunta que um amigo, não por acaso arquiteto, escreveu nas redes sociais: “as manifestações são pelo direito à cidade”.
Se o que junho se tornou é incerto, é inegável que os vinte centavos, com todas as suas implicações, foram o trampolim das jornadas. Isso só pode surpreender àqueles que não dependem do transporte público. O transporte – “direito do cidadão, dever do estado”, como se lê em todos os ônibus da capital paulista – é o direito que oferece acesso a toda uma outra série de direitos. Quando a tarifa aumenta, reduzindo o montante de gente com condições de se espremer feito formiga para ir e vir, a circulação na cidade torna-se ainda mais difícil. É preciso transporte para usufruir da rede pública de saúde, para levar as crianças à escola, para desfrutar dos aparatos de cultura e lazer. Eram enormes os vinte centavos de 2013.
Corte.
“Se há algo que identifica um pensamento como feminista é a reflexão crítica sobre a dualidade entre a esfera pública e a esfera privada”. A citação é da cientista política Flávia Birolli, e nos bota a refletir sobre as forças empenhadas para manter a mulher confinada à esfera individual – na qual, tradicionalmente não se mete a colher. Assuntos da esfera privada não são da nossa conta, aprendemos, tachando de alcoviteiras as pessoas que desafiam esta norma.
Que a esfera pública é domínio do homem, é fácil constatar. Eles são maioria em cargos eletivos, nos corpos docentes das universidades, nos catálogos de qualquer livraria. E nós, bem, nós predominamos no serviço doméstico, passamos mais horas cuidando da casa (7,5 horas a mais por semana, diz o IPEA). Só uma de nós – nunca um homem – poderia ter sido tema de uma matéria intitulada Bela, recatada e – cereja do sundae – do lar.
Liga os pontos.
Ejaculação no pescoço, Avenida Paulista, sol do meio-dia. Clara Averbuck denuncia estupro por um motorista durante uma corrida de Uber. Relato de assédio no busão, a vítima é esta que vos fala, publicado neste Infame. As cifras não mentem: denúncias de assédio no transporte público cresceram 850% em quatro anos em São Paulo, diz o Datafolha. Terão aumentado os casos? Truco. O que aumentou, finalmente e ainda pouco, foi o volume da nossa voz. O transporte público é inóspito para as mulheres.
Cai a noite, a coisa piora. Pegar ônibus depois das 21 horas significa quase que irremediavelmente entrar em uma grande caixa metálica onde você ficará confinada apenas com homens. É isso ou ir a pé. Opa, não, péra: dá também pra não ir. Dá pra retroceder, pra baixar a voz e amplificar o medo, e voltar a ser do lar.
De fato, em alguma medida, esse é o efeito que o transporte público, esse mediador da cidade, provoca na gente. Não, a gente não vai jogar a toalha, mas o espaço público, esse que deveria ser de todos, é menos nosso, também por conta das relações de gênero que se dão nesse contexto onde pessoas ficam grudadas umas às outras às vezes por 30, 40 minutos todos os dias.
Muitas iniciativas têm surgido nessa questão – aplicativos, treinamentos para o acolhimento de denúncias, o equivocado “vagão rosa” etc – e se o “ejaculador da Paulista” deixou algum legado positivo, foi o de finalmente botar a pauta em pauta. Qualquer mudança cultural demanda tempo e métodos diversos para contaminar uma população do tamanho da nossa. Mas enquanto isso, vale um post it para os rapazes: o transporte é público, o corpo das mulheres, não.