Eu estava no ônibus quando meus olhos foram atraídos na direção dele. Olhei pra o sujeito e ele me mandou um beijo asqueroso – se você é mulher, você sabe do que estou falando. Não aconteceu nada. Eu respondi, como quase sempre faço quando há gente o bastante pra eu me sentir segura, e ele se intimidou. Como somos treinadas para o silêncio e o recato – inclusive eu, libertária descolada da zona oeste – e eles, para ocuparem o mundo com suas vozes e desejos, os homens costumam desmontar diante do inesperado de uma mulher que responde. Mas o caso é que dessa vez ele me venceu.
Passado o susto inicial, o homem se recompôs. Foi tudo muito rápido, mas eu vi quando, por alguns segundos, ele me estuprou dentro da sua cabeça.
O semi sorriso de canto de boca, o globo ocular percorrendo meu corpo: “ensino rapidinho a se comportar”, ele pensou, eu sei que ele pensou, e inverteu minha coragem no tesão dele. O homem ganhou, e ganhou de virada. E eu, ainda presa no mesmo ônibus em movimento que ele, murchei. A carne estrebuchando ainda viva no gancho do açougue, e todo mundo, nada. Ninguém nunca faz nada.
Como o espaço público é dos homens – a história do Feminismo é a história das mulheres que ousam habitar o espaço e a vida pública – eu perdi também o ponto. Eu sou uma mulher, e mulheres precisam escolher por onde andam a partir de critérios muito mais estreitos do que aqueles que norteiam os rumos dos homens (e aqui falo de todos eles, os escrotos e os bacanas). Desci na Cardeal com a Henrique Schaumann (mínimo de 5 pessoas no ponto: check). As pernas custavam a me obedecer, os olhos queriam desesperadamente localizar o homem, saber se descia comigo, conhecer a distância que nos separava. Mas eu estava com medo demais para olhar.
Sim, eu perdi. Perdi o ponto, o tesão, a leveza, a liberdade. E na sequência perdi pra mim mesma, quando me ouvi pensando que não aconteceu nada. Cheguei ao bar onde estava indo e um monte de amigos me ouviu dizer de novo e de novo que não aconteceu nada, não aconteceu nada.
“Nada” é um negócio que acontece todo dia, em toda parte. E, sim, eu acho que tem melhorado. Acho que a gente tem podido enfrentar esses caras – na real é bem fácil intimidá-los – e acho que a tendência é que esse tipo de comportamento deixe de existir. Eu trabalho pra isso e conheço muitas mulheres maravilhosas que trabalham pra isso também. Mas não vai acontecer no tempo da minha vida. É um processo longo (porque cultural), e penso que enquanto eu estiver viva, viverei com medo. E esse medo, se você nunca sentiu (e, portanto, é homem), preste atenção: esse medo é um líquido quente e grosso que se espalha por todo o seu corpo, e que quando atinge o cérebro, tudo o que você consegue pensar é se chegou o dia em que você vai ser estuprada.
Homens não sabem o que é isso. Eles não costumam pensar em si mesmos como vítimas de estupros. É natural, já que eles raramente se vêem representados dessa forma nas novelas, quadrinhos, filmes (pornôs ou não). Mas empatia requer coragem – você tem coragem o bastante pra se imaginar nesse lugar?
Um a cada 12 minutos, é o que dizem. Ocorre que essa conta é baseada no número de estupros reportados, então pode botar no mínimo uma meia dúzia enquanto você lê esse texto.
Eu não fui estuprada, nesse e em nenhum dos muitos outros dias em que não aconteceu nada. Mas eu sei que há uma probabilidade considerável de que algum dia alguém me enfie o pau à força. Então, um favor: conta pra alguém que ontem não aconteceu nada comigo. Conta pra alguém que isso que aconteceu, até eu chamo de “nada”. Conta pra algum amigo que quando eu tenho que voltar pra casa à noite eu costumo ser a única mulher do ônibus. Cutuca alguém aí do seu lado e diz “que merda, a rua ainda é um espaço muito mais dos caras do que das minas”. E na sequência, faz o favor, emenda o seguinte: “bom demais esse lance de querer ir até a padaria da esquina comprar mais cerveja e pimba!, ir à padaria comprar mais cerveja. Sozinho, sem ter que pedir companhia ou pensar se não é melhor pegar um táxi”.
É pesada essa porra, e eu preciso de ajuda, porque sozinha eu não vou dar conta de construir um mundo – pode ser só o meu mundinho particular, pra começo – onde uma cena de assédio é um absurdo, onde as pessoas falam sobre isso começando com “você não acredita o que acabou de acontecer!”. Me ajuda? Me ajuda a não levar isso pra casa sozinha? Me ajuda a não começar a contar pras pessoas dizendo sempre que “não aconteceu nada”? Porque ontem não aconteceu nada. E quando não acontece nada, a gente não faz nada.