Se tivesse só uma palavra para dar ao Rio de Janeiro, daria respeito. Se além do respeito me oferecessem a chance de dar uma segunda coisa, também daria amor. E no caso de um terceiro e último presente, enfim, daria o que talvez mais se espera de um paulistano como eu: um pouco de rivalidade. Não a rivalidade da antipatia, mas a rivalidade didática, aquela que serve só para não esquecermos que sem conflitos e diferenças ninguém, nem mesmo as metrópoles fascinantes, conseguem andar para frente.
Recentemente fui trabalhar no Rio e voltei pensativo. Tenho poucas lembranças infantis da cidade, sempre na companhia dos meus pais. São cenas esparsas, confusas, quem sabe até inventadas. Areia em regiões secretas da minha bunda. O Cristo Redentor fazendo bico de tão lotado. Um suco verde muito antes de se falar em detox. Taxistas que exibiam mamilos através das suas camisas abertas. Minha tia-avó, portuguesa de nascença e carioca de trejeitos, contando histórias com um charme superior à média de charme com que eu estava acostumado. Fui começar a desenhar um mapa mental da cidade quando voltei vários anos depois para alguns carnavais de rua. Aqui é a Gávea, ali na frente vende o caldinho de feijão, deste lado a praia é mais legal, naquele bloco tem que chegar cedo porque lota rápido. Era o Rio de Janeiro apresentando suas armas. Ostentação desavergonhada de poder, pavão exibindo suas plumas. Meus amigos, que porrada. Arsenal de uso exclusivo do exército. Bala perdida de cores, gostos, palavras e acordes. Poesia metralhada gratuitamente pelas ruas, servida numa concentração letal para quem chegasse assim meio desavisado, esperando o que se espera das cidades triviais.
Minhas oferendas de respeito e amor, portanto, foram fecundadas nessa época. Àquela altura já tinha lido alguma coisa sobre urbanismo e o uso democrático do espaço público, mas o Rio de Janeiro fazia questão de menosprezar boa parte daqueles conceitos, tornando-os óbvios, elementares, intuitivos (ao menos na privilegiada zona sul, onde concentram-se os turistas). Deve ser difícil explicar para um carioca não muito viajado que, em outras grandes cidades do mundo, as pessoas não se encontram na rua, não caminham pelo bairro, não sentam na praça, não deitam na praia e ainda por cima preocupam-se com a criação de sistemas e modelos e cartilhas e monografias ensinando como se faz para fazer tudo isso; como se faz para se apropriar do que sempre foi seu. Para o carioca, esse discurso talvez soe como um pós-doutorado em como vender areia na praia ou água na piscina. Isso porque, no Rio de Janeiro, estar junto pertence ao campo das normalidades. Lá naquela cidade, conviver é hábito.
Quando pensamos em “política” costumamos pensá-la no seu sentido mais macro, de prefeitos, deputados, ministros que mudam a política econômica e tapam buracos nas ruas. Mas política não é só isso. Ou sequer seja isso. Essencialmente, política é, como dá a entender a origem grega da palavra, a soma das relações entre as pessoas. Pensando assim, o Rio é uma capital de resistência política. Resistência contra o medo, os encantos do mundo virtual, as inseguranças pessoais, os salários de funcionários públicos atrasados, o egoísmo e tudo aquilo que nos afasta da presença uns dos outros. Resistência política que, por ser carioca, fez-se também resistência poética. A poesia do samba no boteco com atendimento terrível; a natureza quase marciana de tão bonita contrastada com a decadência urbana elegante e não fingida; o tempo que anda lentamente e de vez em quando resolve parar; o calor denso que, a cada passo, te responsabiliza por estar vivo. E quanto mais velho eu fico, mais me dou conta da importância disso: responsabilizar-se, cobrar-se, exigir-se pelo privilégio de ainda estar vivo. E isso o Rio sabe fazer comigo: me lembra, por meio da sua poesia, que viver é um bagulho a ser levado a sério.
Se o Rio de Janeiro é mesmo a cidade maravilhosa, é nessa junção de poesia e política que estão suas maravilhas. Uma cidade tão bonita vazia de pessoas nas calçadas não passaria de masturbação cenográfica. Pessoas reunidas num local isento de alma não passariam de pessoas em busca de um paraíso perdido. Mas quando estão juntas, poesia e política fazem nascer o reino carioca, cuja legitimidade monárquica não vêm dos céus, mas sim da convivência, das trocas de olhares, das discussões nas ruas, tão democráticas quanto a mais grega e antiga das discussões. Foi nos palcos cariocas que vi, pela primeira vez na vida, um casal fazendo sexo no meio da rua ao ar livre. É lá que playboys sobem o morro e favelados descem para o asfalto, dividindo a mesma cidade. É no Rio que pessoas deixam suas casas para um banho de mar sem documento, sem RG ou CPF, só com R$10,00 no bolso interno da sunga, porque antes mesmo de serem cidadãos, são banhistas. Lá a praça, a praia e a mureta lhes pertence, são sua sala de estar, seu quarto ou laje, prolongamento dos seus membros, transplante coletivo de almas, orgia de existências entrelaçadas.
Infelizmente, este tornou-se um mundo binário, polarizado, de amores ciumentos, totais e exclusivos. Por causa disso, não se enganem ao pensar estarem diante de um paulistano de poucos amores pela sua cidade. Sequestrados pelo automatismo emburrecedor do dia a dia, pareceria mesmo natural odiar São Paulo em caso de amar o Rio, tamanho é o antagonismo que se pinta entre as duas forças metropolitanas. Mas não. Aqui está alguém patologicamente apaixonado pelo caos, ebulição, inquietude, velocidade e gigantismo irradiados pela capital dos paulistas, mas nada disso representa risco a tudo que foi dito até aqui. Há espaço suficiente no coração da humanidade para muitos amores. Em “Sampa”, um Caetano Veloso apaixonado diz que São Paulo é o avesso, do avesso, do avesso, do avesso, saudando sua beleza desordenada, escondida debaixo de camadas pintadas de feiura. Em “Aquele Abraço”, seu parceiro Gilberto Gil diz que “o Rio de Janeiro continua lindo”, rendendo-se à sua beleza gritante, escancarada, inegável. Dois baianos juntos em homenagem a esses gigantes da nossa identidade nacional, porque São Paulo e Rio são únicas, tão únicas quanto Recife, Salvador, Brasília, Porto Alegre ou Manaus. Ou mesmo Katmandu, Paris ou Tóquio. E ao enxergar essa beleza complementar, holística, simbiótica, nós nos fazemos mais fortes como brasileiros. Porque não haveria Brasil sem nenhuma delas. Haveria, no máximo, um outro Brasil, um Brasil que, por ser outro, não é o nosso.
São Sebastião do Rio de Janeiro. Não há crise capaz de roubar seu magnetismo. Serão necessários séculos de governos corruptos e caloteiros para fazer com que sua graça seja abalada. Te respeito porque assim faço justiça à sua superioridade poética. Te amo porque me faz sentir mais brasileiro, essa nacionalidade fictícia que consta dos meus documentos de nascença. Te rivalizo para que não se deixa levar por sua beleza desconcertante e, aos poucos, entregue-se à mediocridade. O que é uma outra forma de dizer que te rivalizo por amor. Capital moral da minha pátria, centro cósmico da bandeira à qual me curvo. Não tenho a menor ideia do que significa ser brasileiro, mas seja qual for a resposta, ela está mais próxima do Rio de Janeiro.
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