Ir ao samba, para mim, não é uma experiência livre de aflições. Vou mesmo assim, porque mesmo assim gosto, mas enquanto vou indo vou também sentindo o temor de estar prestes a ser desmascarado. Porque é exatamente isso que faço lá; ou exatamente isso que os outros fazem de mim: escancaro-me.
Normalmente consigo disfarçar por umas três músicas, seja conversando com amigos ou passando um tempo na fila da bebida. Até que finalmente tocam aquele clássico dos clássicos, aquele que faz a gente sair correndo do banheiro de zíper aberto, ensinado de pai para filho, do refrão que o cantor deixa só pra galera cantar, e a partir daí é tarde demais: já estou oficialmente escancarado, exposto, pelado no meio de tantos intérpretes semiprofissionais.
Enquanto eles cantam penso onde eu estava no dia em que aprenderam aquele samba. Penso sozinho, abandonado, açoitado pelo coro das vozes. Olho para os lados discretamente e só vejo bocas em movimento e olhos que se fecham apertadinhos de emoção, como quem diz que aquela letra, sabida de cor há anos, significa muito para eles. Podem sim estar emocionados, mas também suspeito que fecham os olhos em solidariedade, sensibilizados pela dor de um visitante que não sabe se foi convidado e tem um mix de vergonha e medo de perguntar. Até porque, se perguntasse, só responderiam bem mais tarde, assim que voltassem do transe, assim que suas bocas estivessem vazias de samba. E samba não sai com água; samba é coisa que segura firme e demora para sair de dentro da gente.
Sou fiel demais aos meus heróis americanos e ingleses para dizer que me arrependo de ser filho do rock. Dizê-lo seria muita ingratidão. Para cada vez que saio do samba sem pai nem mãe, há sempre um disco dos Stooges ou do Sonic Youth ou do Black Sabbath pronto para me consolar chegando em casa. O que não significa ser esse o antídoto perfeito e que a sensação de ser um desertor musical não doa mesmo assim. Porque dói. No fundo no fundo, eu talvez estivesse disposto a trocar algumas músicas gringas piorzinhas por certa quantidade de sambas bem populares, suficientes para que eu aprendesse a cantar pelo menos uns 25% da festa. Acho que trocaria sim. Verdade seja dita, aqui entre nós, trocaria com certeza.
A pior parte de não cantar enquanto os outros cantam não é ficar quieto sem saber o que fazer; é sim a linha divisória que aos poucos vai sendo traçada separando você de um lado e os outros do outro. Não sei quem é o sádico caprichoso que a traça, se somos nós ou são eles, se são anjos ou demônios, só sei que o fazem com a paixão de quem pretende dedicar suas vidas ao ofício de dividir a humanidade segundo critérios injustos, enfraquecendo-a ao dividi-la em gangues inimigas.
Deixa eu tentar explicar um negócio: uma coisa é você ser jogado para o lado de fora dessa linha divisória num show de tambores japoneses ou de flautas peruanas. Outra coisa bem diferente é estar sozinho dentro de casa, no seio das pessoas que, se o mundo explodisse em guerra, deveriam lutar no seu time e tomar tiro no seu lugar. Nesse momento dá tilt na cabeça, noções sobre pátria e nação derretem-se em segundos e o Brasil sai correndo de dentro de você, um pouco por vergonha da sua desfeita, outro pouco por ter sido expulso durante o susto que você levou.
Nesse jogo de às vezes estarmos dentro e às vezes estarmos fora dessas linhas que separam as pessoas, seguimos a vida dividindo e excluindo aqueles que não sabem a letra do samba, aquelas que são de outra cor, que não votam no seu partido ou não acreditam no seu deus.
Dói saber que lá do outro lado da linha tem gente achando que, ao ficar quieto, você não está sentindo o que eles sentem, que o samba não te toca da mesma forma que os toca, que o samba não te pertence ou no máximo pertence provisoriamente, alugado, como se pertencesse a um turista, a um finlandês, italiano ou senegalês que tem o direito de bater palmas e repetir la-la-lás, mas não pode levá-lo para casa, para dentro da sua vida, para a marcha nupcial de seu casamento ou a lápide do seu túmulo. Quando um fulano é descredenciado da lista de autorizados a sentir o samba, fora do raio dentro do qual ele teria o direito de sentir a mesma coisa que sente o sambista cadastrado no sindicato, temos todas as desculpas do mundo para concluir que a sua alegria não nos diz respeito. E se a alegria não diz, muito menos diria a dor, naturalmente mais muda que a alegria. É este o primeiro passo para aliená-lo, tirá-lo daqui, mandá-lo procurar sua turma. Neste contexto é que volto para casa, para encontrar a minha turma, os Ramones, a Patti Smith, o Bad Brains, o Bowie, esses que, assim como o samba, também acolhem ou desacolhem seus súditos como bem entendem, no baile injusto e pouco criterioso que é o baile da aceitação.
Eu amo o samba. Há lugares para os quais só o samba sabe me levar, onde o rock não chegaria nem com a ajuda de um GPS. Há coisas que só Cartola, Candeia, Clara, Paulinho têm linguagem para expressar. Mas por ter começado a ouvi-lo atrasado, depois dos meus 20 e poucos de idade, a coisa começou meio capenga, sem que conseguisse decorar as letras, sem saber quem estava tocando e em que ano aquele disco foi lançado. Assim foi que comecei a namorar o samba, num relacionamento clandestino, aberto, sem ciúmes, a dividir espaço com o rock, o jazz, o soul e outros gêneros que sabem dizer coisas só suas.
Estamos acostumados a ouvir sobre ganhadores do Nobel da paz que acabaram com guerras e erradicaram epidemias. Nada contra esses que fazem bondades grandiosas, mas eu também daria o Nobel para aquela pessoa que um dia cruzou o salão, chegou do meu lado e começou a cantar a letra do samba no meu ouvido, para que eu pudesse sentir o que ela sentia. Na verdade, sendo bem honesto, essa tal pessoa nunca fez isso e sequer existiu. O que não muda o fato de que sim, mereceria um Nobel só para si, porque se tivesse mesmo cruzado o salão teria apaziguado a guerra que carrego há 34 anos, retirando guitarras e tamborins das trincheiras e fazendo com que ressoem livres a quem queira senti-los. Nesse instante, com a paz selada e a festa começando, ouviríamos saindo dos alto-falantes as palavras de Nelson Cavaquinho: “Graças a Deus minha vida mudou; quem me viu, quem me vê, a tristeza acabou; contigo aprendi a sorrir; escondeste o pranto de quem sofreu tanto; organizaste uma festa em mim; é por isso que eu canto assim”. O rock que me perdoe, mas seria dia de festa e a gente sabe que o samba festeja melhor. Ao som dele dançaríamos, dessa vez sem divisórias. Bocas fechadas ao lado de bocas cantantes. Ainda que tirássemos a roupa, não estaríamos mais pelados. Seríamos uns dos outros, escancarados, enfim compatriotas.