A Avenida Paulista, um dos principais marcos geográficos, financeiros e turísticos da cidade de São Paulo, se apresenta impressionantemente vazia em “ASEPTIC”, filme produzido pela CAVE e protagonizado por Rubens Oliveira. O filme faz alusão à necessidade de isolamento social e esterilização constante, como únicas alternativas possíveis para evitar o contágio pela COVID-19.
A situação atual é emergencial e exige ações rápidas e precisas e, por isso, Rafael Kent, diretor do filme, valeu-se do discurso histórico do ativista norte-americano Larry Kramer quando, em 1991, comparou a rápida propagação do HIV a uma praga. “Assim como naquela época, sobram informações truncadas e faltam políticas públicas para lidar com a pandemia. A responsabilidade individual e, ao mesmo tempo, social são essenciais para evitar o contágio e a disseminação ainda maior de pandemias”, informa Kent.
Se Kramer dá o tom de urgência, a fotografia, permeada de paradoxos, remete ao contexto atual: nas reflexões que a sombra traz, surge a esperança da luz. Das pausas profundas e solitárias, seguem os movimentos intensos e catárticos que convidam a se libertar das amarras e valorizar a vida plenamente, apesar da perda de liberdade e insegurança atual. Junte isso à força da trilha produzida por Ubunto, produtor e DJ baiano que tem como “Atlântico” a música contemporânea que se entrelaça à dança tribal e ancestral, improvisada por Rubens. A linguagem urbana do concreto e do asfalto se somam às fontes serifadas do universo literário, que marcam a citação perturbadora de Albert Camus, em “A Peste”, e que encerra o filme.
Na seção de curadoria de hoje, conversamos com Rafael Kent sobre o contexto atual, suas motivações em meio ao caos e o papel da arte em um momento como esse. Confira:
-Como você se sente hoje e como se sentia dois meses atrás?
Confesso que ainda não sei dizer, acredito que antes de estar trancado em casa essas três semanas, eu vinha numa entoada parecida com a de todo mundo. Supercansado, meio desnorteado, que nem um lutador de boxe que tá supertonto, mas continua de pé. No final acho que tá todo mundo assim, né? Ter uma carreira hoje é algo bem estressante, porque muita coisa acontece de uma vez e a montanha-russa do que esperar da sua carreira é sempre uma constante.
Quando tudo isso começou, de fato eu vinha de uma produção que acabou exatamente um dia antes de fazer mercado e permanecer em casa, então eu não senti tanto a primeira semana, por exemplo, porque foi o momento de entrega desse trabalho, edição, aprovação etc.
Uma coisa que comecei a pensar, sobre como eu me sinto agora, é que, provavelmente, muito do cansaço mencionado acima tem a ver também com o, pasmem, excesso de social.
É estranho dizer isso porque eu sou uma pessoa extremamente extrovertida e bastante sociável, gosto de gente. Mas a troca de energia diária, até mesmo nas redes sociais, dá uma cansada na mente. Estar com pessoas, especialmente as criativas, “plus” o turbilhão de informações diárias da uma ligeira desnorteada. É tudo pra ontem.
Fato que é muito triste estarmos vivendo esse baque mundial, sendo que mais da metade do planeta não estava preparada pra isso. Muito louco! O ser humano acho que tá preparado pra tudo, sempre, mas não tá, né? Quando digo preparado, digo preparado economicamente, principalmente. Acho que o abismo social fica ainda mais aparente, né?
Mas eu acredito que de alguma maneira, do caos, sempre surge algo novo. Aliás, é do caos que a maior parte da criatividade surge. Bem, pelo menos eu espero que sim, algo de bom tem que vir desse momento doido que estamos vivendo.
Então é um misto de emoções muito grande. Não sei como vai ser quando meus HDs (materiais) se esgotarem, pois é o que me anda fazendo estar motivado. Mas eu espero que eu consiga me manter criativo e trabalhando. Afinal, as mídias estão aí, nas mãos de todos.
-Quais as reais motivações por trás do filme e como você se sentiu ao fazê-lo?
É muito louco falar disso, porque pra fazer filme eu tô sempre motivado, na verdade. Tenho milhares de ideias por dia. Vontade de fazer 300 coisas diferentes e isso também é motivo de cansaço mental. Sabe? Acho que hoje o ser humano tem que aprender a lidar muito mais com a frustração diária também. Do desapego. Aquela ideia brilhante que você não vai fazer ou alguém fez na sua frente. E tá tudo bem.
O ASEPTIC nasceu agora, nesse momento que estamos vivendo, e a quarentena me deu foco pra terminá-lo, mas o filme foi feito em novembro de 2019. Era mais um autoral experimental, eu sempre pirei naquele vão da Paulista e nas sombras que ele acaba fazendo quando tem muito sol.
Eu já tinha a música na cabeça. Esse filme, na verdade, nasceu como um clipe. Pra música “Atlântico” do Ubunto, DJ e produtor baiano. Ia ser um lance experimental, que ganhou mais força agora justamente por conta da sensação de “quarentena”.
Com a quarentena, me entretendo com o material, o ASEPTIC tomou mais corpo. O clipe, além de ser um clipe, acabou ganhando mais sentido. Estou feliz.
-Qual a importância da arte em um momento como esse?
Acho que fazer as pessoas pensarem de uma maneira diferente. Quando fazemos um filme assim, existem muitos códigos nele implícitos, mesmo porque um filme ou uma foto, ao contrário de uma música, carrega imagens, pessoas, dança e expressão. Então, são muitos elementos para que as pessoas transcorram sobre eles de maneiras muito pessoais, com seus próprios signos e interpretações. No final, se isso gerar pontos de vista e discussões em cima deles, o propósito foi atingido. Acho que a arte, no geral, tem esse papel, em um momento como esse, que precisamos discutir em como nos mantermos unidos, mais ainda.
– Como esse filme foi feito?
Acho que é aquela obra do audiovisual que é fruto de realização, sabe? Como disse, sempre tive vontade de filmar ali e filmamos em três pessoas, sendo que uma delas era o próprio Rubens, dançando.
Gosto de coisas experimentais porque elas nascem sem pretensão, acredito que possuem mais verdade, muitas vezes.
Era eu, o Rubens e o Luiz, o Rubens havia feito toda a parte de balé do clipe do BaianaSystem (SACI – REMIX), e o Luiz Maximiano foi o fotógrafo do clipe. Então a gente já se conhecia também. A galera topou a minha visão do filme e isso é sempre incrível, né? Pessoas que acreditam nas suas ideias e, mais ainda, no olhar.
Era um domingo de manhã, de muito sol, na Paulista, então a avenida estava praticamente fechada pra gente, um luxo para poucos, rs. Ficamos ali mais ou menos por duas horas. Filmamos bastante com a câmera do Luiz e depois subi meu drone, eu já queria usar o drone ali fazia tempo também. Dá pra fazer uns planos de câmera muito loucos.
Quando o filme começou a tomar forma, outros amigos entraram no barco, a galera curtiu a ideia e o momento, a mensagem. Então chamei o Pedro Reis pra fazer toda a mágica da parte de direção de arte, types etc. A gente se entende bem, fizemos três filmes juntos já, para clientes muito legais, como Audi, Doritos e 99. O Pedro, assim como meus sócios Tânia Assumpção e Rafael Marquez, – que também são os produtores executivos de ASEPTIC – também me ajudaram a embasar o conceito do filme. Formamos uma espécie de hub para desenvolver a parte mais conceitual do projeto, que ao nosso ver, transformou o filme numa potência com bom embasamento. O Acauan Pastore, que é um colorista que eu gosto bastante, também entrou no time para fazer aquela cor crocante de sempre, agregou muito ao filme; e o Driano Torres, da Gafanhotto Post, fez o milagre de apagar as poucas pessoas que ainda apareciam no filme pra fazer a cidade ficar completamente vazia.
Enfim, um time de peso.