Às 3h da manhã, revirando o armário da sala de casa, na Vila Mariana, São Paulo, entre livros, carregadores de celular, cabos inúteis e outros aparelhos domésticos estragados, encontro uma caixa de papelão, com nome genérico impresso nela. À caneta, em caligrafia ruim, a palavra “Caosmos” identifica que ali jaz algumas dezenas de cópias do meu primeiro disco. Abro uma delas – não escuto há meses – observo a arte gráfica, as dedicatórias, as imagens da terra vista do espaço, junto de letras de canções que compus há alguns anos e que me levaram a um universo de euforia, alegria e frustração – a música independente.
As imagens – cedidas gratuitamente pela Nasa – foram usadas para ilustrar o disco de estreia do Pássaro Vadio: Caosmos. Satélites sobrevoando vales avermelhados, fusões do azul turquesa do mar com o solo arenoso do deserto, do escuro da noite no espaço com as luzes acesas de grandes cidades, incluindo essa imensa teia latino-americana chamada São Paulo (imagem de capa do disco) me lembram de uma premissa que considero importante enquanto músico e compositor: buscar observar o mundo de uma nova perspectiva. Se necessário, destruir completamente uma ideia pra que uma nova renasça mais forte, pulsante.
Historiadores modernos, como Yuval Noah Harari, apontam para um futuro onde o mercado da biogenética explodirá, assim como uma nova desigualdade, ligada não só ao consumo mas ao talento e capacidade de produzir – aqueles que detém o dinheiro e o poder terão acopladas ao corpo ferramentas que os farão mais talentosos, capazes e longevos. Diante dessas assustadoras previsões de um homem cyborg, alheio às noções de vida e futuro que um jovem dos anos 90, como eu, carrega no inconsciente, só me resta mais uma vez respeitar o “ar se despedaçando” (como diz a letra da primeira música de Caosmos) e ter coragem para encarar uma novíssima (e assustadora) configuração da vida, se necessário.
Talvez em algumas décadas os seres humanos detenham junto ao corpo a capacidade de produzir música – o que reduziria ainda mais o espaço de músico e instrumentista no “mercado”. Talvez institucionalizem um lugar para a música independente, como um museu da música autoral, imersivo, com pisos e paredes brancas e quase sempre vazio.
Não se consome mais discos no Brasil e no mundo. As playlists e plataformas de streaming ganharam corpo e exemplificam esse novo espaço que a música ocupa: um complemento de outras atividades. Há, mais do que nunca, músicas para dormir, para transar, para correr, para escrever, para gestação, para o luto. Os artistas são usados (talvez sempre tenham sido) pela sociedade como símbolos desacoplados do constante movimento do mundo – perpétuos dentro do seu estereótipo. Signos usados para dar noção de pertencimento a alguém – ouço tal coisa e portanto faço parte desse ou aquele grupo – mais em função do que aquele artista representa do que da sua canção.
Lançar um disco ainda rende resenhas em alguns blogs especializados, dá credibilidade ao artista diante de alguns curadores e jornalistas, e não muito mais que isso. Os streamings prometeram rentabilizar de forma inédita o artista pós-gravadoras e hoje apenas 14% do que plataformas como o Spotify arrecadam vai para o bolso do compositor. Além da divisão desigual, há um completo descaso de todos nós pela pauta “propriedade intelectual na internet”. Ninguém quer pagar por nada na web. Diante desse panorama, acho importante ao menos buscarmos questionamentos para que, quem sabe, esse ciclo se renove.
Assisti recentemente a serie dirigida por Donald Glover (Atlanta), em que ele também atua, como empresário de um rapper em ascensão na cidade. O roteiro intercala com talento momentos trágicos e cômicos dos personagens diante do caminho tortuoso longe das grandes gravadoras, mas o que mais me chama atenção, para além da série, é a figura do Donald Glover. Ele é músico, compositor, ator, roteirista e diretor – conseguindo a proeza de desempenhar extremamente bem todas as atividades. Glover simboliza o fato de que talvez precisemos pensar numa nova ideia de artista e num novo lugar para ele ocupar. Buscar reconhecimento e grana para os boletos construindo uma obra como a de determinado artista, contemporâneo ou não, é uma ideia muito provavelmente fadada ao fracasso. Se a pós-modernidade é caósmica, líquida, e se os símbolos, movimentos e produções de sentido mundanos se multiplicam mais rápido do que o olho humano pode captar, talvez o artista precise se posicionar também dessa forma: como organismo volátil, maleável e quase esquizofrênico diante do público.
De que adianta o pessimismo? A retórica elitista de que não se ouve mais música boa? O ataque às culturas populares e de massa como o maravilhoso crescimento do funk (que vai das favelas brasileiras para o mundo e vice-versa)? Ao invés de permanecermos na psicanálise da arvore genealógica da música, dos conceitos por trás dela, da estética cujo gosto refinado te foi herdado, por que não partir para a esquizoanálise de poder ser o que se quiser ser. Criar a própria narrativa, com coragem, com honestidade e esforço.
Isso não significa agir impulsivamente, sem estratégias, sem suor e pragmatismo. Ao contrário. É importante ter a dimensão de que a arte independente é o fio de tensão do mercado formal e seu conservadorismo. Enquanto as pautas progressistas avançavam na marginalidade das grandes cidades, as marcas ainda usavam a mesma retórica estereotipada, o mesmo discurso “ponderado” em suas campanhas. Só quando as questões de gênero transbordaram para o mainstream, quando as figuras cultuadas passaram a ser trans, sem gênero, que a publicidade e o mercado tradicional passaram a olhar para elas. Isso não é uma crítica ao fato de esse movimento ter acontecido nas grandes empresas, mas sim uma análise de que a música e a arte independente estão um passo à frente do mercado em relação às ebulições sociais, e sempre muitos passos atrás em relação à rentabilidade. Se a publicidade se apropria da estética que nasce da cultura independente; se a grande marca se conecta com o público fomentando/se apropriando da cultura independente; logo a produção independente desempenha um papel vital cujo protagonismo lhe é negligenciado. É preciso reconfigurar as regras do jogo.
A lógica majoritária no mercado fonográfico independente hoje é de escassez e medo, amparados por uma metodologia publicitária de comunicação. Essa tríade vai se retroalimentando até fazer a música virar um fardo na vida do próprio músico. O artista se agarra ao pouco que tem, e entra num turbilhão de expectativa, frustrações e comparações injustas com os caminhos percorridos por outros artistas. A triagem do conteúdo distribuído por ele é feita a partir de uma ideia de sucesso muitas vezes enganosa. Esse sistema vai criando um peso enorme, que ainda é intensificado pela confusa mistura entre vida profissional e pessoal, própria da criação artística. Enquanto isso, o motivo vital de se fazer música e arte independente, que é a paixão, passa a minguar exponencialmente. A retórica do artista/empreendedor, dos livros de auto-ajuda com promessas milagrosas de sucesso, os cursos para viralizar sua música na internet, fizeram com que muitos artistas independentes lançassem mão de táticas de um mercado que esteve sempre um passo atrás deles próprios.
Será que o momento não é de se apropriar do fracasso do mercado de música independente como forma de transformá-lo? Talvez seja a hora de abandonar o hype e o esforço publicitário em inflar tours para meia dúzia de shows no exterior. De bancar essa escolha insana (no melhor sentido da palavra) de fazer canções, clipes, turnês, flyers, quase sempre sem nenhum dinheiro, de maneira colaborativa, na base do esforço e da vontade. De rir das circunstâncias. De devolver a leveza de quando se ouvia e fazia música sem nenhuma pretensão que não fosse ficar bem, ou pra transformar aquilo incomodasse e fizesse mal. É dessa fonte genuína de energia que o mercado se alimenta. E é na afirmação dessa diferença, na ruptura de antigas narrativas, que muitos movimentos se desenvolvem e conquistam um espaço que sequer existia antes.