Entre diversas instâncias, museus são constituídos de memória. Mas aí está uma dimensão que, muitas vezes, parece não fazer parte do repertório sociocultural brasileiro. Passados seis meses desde que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) anunciou que colocaria à venda o quadro “No. 16” (1950) de Jackson Pollock porque enfrentava problemas financeiros, o assunto morreu.
Se no momento do anúncio a comoção foi geral e muita gente se posicionou (sobretudo, contra a venda), hoje não se tem notícias de a quantas anda este trâmite. Estamos realmente interessados na sobrevivência dos nossos museus e na perpetuação da nossa memória?
De lá para cá, muita coisa aconteceu no cenário artístico nacional. Traçando um paralelo entre fatos recentes e a decisão do MAM Rio, propõem-se o levantamento de alguns questionamentos. Refrescar a memória para (re)pensar o futuro.
Mercado de arte e políticas públicas
Há menos de um mês, um incêndio de grandes proporções destruiu o Museu Histórico Nacional (MHN) no Rio de Janeiro. Tratou-se de uma tragédia anunciada: a instituição estava gritando por socorro havia anos e ninguém ouviu. No meio de toda a comoção (ainda parece pouco), quantas pessoas ou veículos de comunicação realmente discutiram a política de preservação e manutenção das instituições museológicas brasileiras?
Em um contexto político pré-eleitoral completamente inflamado (para não perder o trocadilho), a discussão rapidamente se tornou partidária, permeada por discursos de ódio, evidenciando a completa desinformação sobre questões do patrimônio, da formação e sobrevivência das coleções, da importância e da necessidade da pesquisa e do financiamento. Ainda estamos encarando as cinzas. E talvez preservar as ruínas do MHN, exatamente como estão, seja a melhor estratégia: monumento ao descaso histórico nacional.
Corte para quatro décadas atrás, em oito de julho de 1978, quando o próprio MAM Rio pegava fogo. O incêndio destruiu quase todo o acervo e suas causas nunca foram esclarecidas. Investigações da época apontaram um curto-circuito causado por instalações elétricas defeituosas como a “origem mais provável do incêndio”, que fez o museu fechar as portas por alguns anos. E, mesmo depois de reaberto, o MAM também teve que interromper suas atividades por causa de goteiras e falta de segurança para o acervo. Depois de uma longa campanha de solidariedade, o museu foi se reerguendo.
Será que, mais de quarenta anos depois, estes dois incêndios não passam de coincidência? Os museus, públicos ou privados, históricos ou contemporâneos, científicos ou artísticos, estão pedindo socorro. Há muito tempo. Não conseguem sobreviver no Brasil. As contas não fecham e há uma desproporção gigantesca entre número de visitantes e número de opinantes ocasionais.
E na ressaca do incêndio no Museu Nacional, em 18 de setembro deste ano, o governo federal decidiu, sem aviso prévio, mudar a gestão dos museus sob a sua alçada. Uma medida provisória assinada por Michel Temer extinguiu o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia subordinada ao Ministério da Cultura (MinC) e responsável pela manutenção de 30 museus espalhados pelo país.
Agora, essas instituições serão geridas por um órgão de nome muito semelhante, porém de administração radicalmente diferente. O Ibram vai se tornar Abram (Agência Brasileira de Museus), instituição não vinculada diretamente ao Estado e que pretende impor às instituições filiadas métodos de gestão da iniciativa privada. Em outras palavras, a agência deve se constituir como um serviço social autônomo, equivalente às instituições do “sistema S”, como Sesc, Senac, entre outras.
A medida ainda precisa ser votada no Congresso, então existem etapas a serem cumpridas. Mas chama atenção a assinatura de uma medida provisória como essa em um período tão próximo às eleições. As opiniões estão divididas, porém é inevitável pensar que o governo se aproveitou do incêndio do MHN para iniciar um projeto maior de privatização de museus. Passando bem longe das discussões rasas sobre neoliberalismo que congestionam nossas decisões políticas neste momento, é inegável que a mudança contraria o dever constitucional do estado brasileiro de garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acessos às fontes da cultura nacional.
E o que isso tem a ver com o MAM Rio? O fato de que o Museu de Arte Moderna é uma instituição privada passando por dificuldades financeiras. Ou seja, levanta-se a questão: privatizar resolve o problema quando, simplesmente, não há política pública de museus no Brasil? A falta de uma estrutura que assegura, valoriza e divulga as instituições afeta ambos os segmentos museológicos – os públicos e os privados. E é preciso conectar este fato com a PEC dos 20 anos: sem educação não há público, não há reconhecimento. Então, é preciso deixar claro que a discussão sobre arte e mercado no Brasil passa inevitavelmente pela reavaliação das nossas políticas públicas.
Vale lembrar, inclusive, que o Ibram se posicionou contra a venda do Pollock. Marcelo Araújo, então presidente do órgão, pediu ao MAM que suspendesse a decisão para que juntos, museu e Ibram, procurassem outras soluções para o aperto financeiro da instituição. Na época, Araújo não soube dizer quais seriam as alternativas viáveis. Ao pedido do Ibram, Carlos Alberto Chateaubriand, presidente do museu carioca, respondeu que achava “tudo muito bonito”, mas que estava à frente de uma instituição privada e que precisava fechar as contas. Pois bem, alguns meses depois, o Ibram está numa situação ainda mais delicada que o próprio MAM. É o famoso: “tá ruim pra todo mundo”.
Afinal, de quanto é a dívida do MAM Rio? Cerca de R$1.5 milhão. Mas a questão é mais difícil, porque, ao longo dos anos, o museu tem arrecado muito menos do que sua despesa. Segundo a assessoria da instituição, sua manutenção exige, ao menos, R$6 milhões anuais. Em 2017, por exemplo, o museu arrecadou apenas cerca de R$4 milhões.
A obra “No. 16” tem preço estimado em U$25 milhões. Sua venda tornaria o MAM autossustentável por, pelo menos, trinta anos. A proposta do museu é manter o valor arrecadado em um fundo administrado por uma instituição financeira, com seu uso gerido por um comitê e só utilizar parte dos rendimentos anuais para despesas de custeio, manutenção e aquisição de obras.
Mercado e constituição de acervos
A discussão sobre arte e mercado no Brasil passa também pela reavaliação das coleções nacionais. As pessoas e entidades que se posicionaram contra a venda do Pollock argumentaram que essa estratégia era uma manobra simplista por parte da direção do MAM e que o museu precisa é de um “choque de gestão”. Além disso, chamaram a atenção para o fato de esta ser a única obra do artista existente no Brasil, que já enfrenta muitas dificuldades para sediar exposições internacionais. Vale lembrar que a obra foi uma doação de Nelson Rockefeller em 1954, logo após a fundação do museu em 1948.
Por sua vez, o MAM justifica a escolha do trabalho de Pollock também pelo fato de ele não estar relacionado ao foco da coleção: que é arte brasileira moderna e contemporânea. Além disso, em se tratando de obras internacionais, o carro-feche do acervo são as esculturas e não exatamente as pinturas.
Enquanto a decisão foi muito criticada aqui no Brasil, nos EUA, um fato semelhante ganhava repercussão positiva. Em maio desse ano, o Museu de Arte de Baltimore decidiu vender obras de artistas homens brancos (entre eles Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Franz Kline e outros “mestres” do século XX) para financiar a compra de outras peças de artistas pertencentes a coletivos sub-representados em seu acervo, principalmente de mulheres e afro-americanos, com o objetivo evidente de tentar corrigir o cânone da arte. Com as vendas, foram adquiridas obras de artistas como Wangechi Mutu, Isaac Julien, Njideka Akunyili Crosby e Amy Sherald, todos afro americanos.
A revenda de obras dos acervos museológicos não é comum na Europa, onde elas costumam ser patrimônio público e, portanto, não podem ser oferecidas abertamente a compradores – salvo algumas exceções. A prática é muito mais habitual nos EUA, onde os museus tendem a ser estruturas privadas e funcionam com relativa autonomia.
Aqui no Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) lembrou que a obra de Pollock não é tombada. Inclusive, nem o próprio MAM Rio, nem o seu acervo, são tombados. Portanto, a venda de “No. 16” não requer autorização federal.
O Ministério da Cultura, por sua vez, apoiou a decisão do museu carioca. O órgão afirmou em nota, na ocasião, que “reconhece e valoriza a autonomia do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro”. E que a venda do quadro de Pollock “irá assegurar a conservação adequada” de todo o acervo remanescente do museu.
Se por um lado é verdade que temos pouca disponibilidade de obras e exposições internacionais no Brasil, por outro não é como se a produção e o acesso às obras nacionais estivessem garantidos. Longe disso. A dificuldade de sobreviver enquanto artista e instituição (pública e/ou privada) neste país é indiscutível. Também há de se refletir se valorizamos de maneira equivalente os canônes europeus e norte-americanos e os brasileiros. Aliás, os cânones nacionais, de fato, existem? Se sim, eles representam a nossa diversidade, incluindo a maioria populacional de afrodescendentes, povos originários e mulheres?
Essas perguntas permanecem sem resposta e, ao mesmo tempo, depois de todo estardalhaço inicial, parece que o anúncio da venda do Pollock já foi esquecido. Mas o Museu de Arte Moderna do Rio deu sequência aos trâmites para as negociações e aguarda propostas de instituições ou de pessoas físicas nacionais na tentativa de que tela permaneça no Brasil. Se isso não acontecer (não foi estipulado um prazo), a instituição abrirá para casas de leilão internacionais.
A verdade é que ninguém é favor da venda do Pollock. Mas diante de tal cenário o que realmente vale mais? É exagero pensar que seria melhor vender uma obra do que arriscar um acervo? Afinal, quem frequenta o MAM Rio? E o que essas pessoas querem ou precisam ver? Quem expõe no MAM Rio? E quem são os artistas que não têm espaço em grandes instituições?
Não deveria ser um Pollock a nos fazer refletir sobre a importância de valorizar e investir no campo museológico para garantir direito às memórias, respeito a diversidade e a universalidade de acesso aos bens culturais e artísticos brasileiros. Mas foi. Investir em obras é investir em memória. E pensar em mercado de arte é pensar em política.