O recente incêndio que destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro no início de setembro de 2018 levantou inúmeras questões a respeito da verba destinada ao patrimônio público brasileiro e à preservação da cultura nacional. As contas do repasse do museu mostravam um grande déficit, fruto dos recentes cortes do orçamento para as universidades federais como um todo. Porém, o problema de orçamento já era velho conhecido dos funcionários do museu, que chegaram a realizar “vaquinhas virtuais” a fim de levantar verba para a reforma de espaços expositivos específicos. Com forte tradição em pesquisa, o museu mantinha-se vivo com muito custo em função do universo acadêmico que ali frequentava.
O descaso para com esse museu suscita questões também a respeito do lugar do conhecimento e da memória para o nosso país. Mais do que isso, demonstra como o interesse público desvirtua-se em função de interesses privados, que procuram visibilidade em obras de maior destaque, com localização privilegiada e grandes nomes assinando projetos arquitetônicos.
Em entrevista concedida à Radio Globo logo após o incêndio, a antropóloga que trabalhava no Museu Nacional, Adriana Facina, critica o direcionamento de verba para obras que ela chama de “elefantes brancos” (em referência indireta às obras olímpicas e aos recentes museus inaugurados no entorno da Praça Mauá, no centro da cidade do Rio de Janeiro). Ali se encontram os museus MAR (Museu de Arte do Rio), inaugurado em 2013, com orçamento estimado em 80 milhões de reais, e o Museu do Amanhã, de 2016, que custou 215 milhões.
Ambos foram construídos a partir da parceria público-privada (PPP), o que demonstra o interesse do capital privado nos projetos. Presentes na idealização e concepção nos dois casos estão o Grupo Globo e a Fundação Roberto Marinho, além da prefeitura do Rio de Janeiro, e o apoio dos governos estadual e federal. Especificamente no caso do Museu do Amanhã, o número de patrocinadores ativos aumenta: Santander, como o patrocinador principal; Shell, como mantenedor; e os demais patrocinadores: Engie, IBM e IRB Brasil RE; além de diversos apoiadores, fornecedores oficiais, parceiros internacionais e até um “player oficial” (Spotify).
Os números do custeio desses dois museus são bastante exorbitantes quando comparados a outros museus da cidade, com missão mais de preservação, conservação e memória. O Museu da Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, localizado no bairro da Gávea, com origem no século XIX e acervo de 24.000 peças relacionadas à história da cidade, ficou fechado por seis anos e reaberto em 2016, após a aplicação de uma verba de 3 milhões da prefeitura para revitalização. Já as dificuldades financeiras do Museu Nacional do Rio chegaram a comprometer a segurança e a limpeza por falta de pagamento de funcionários, ocasionando fechamentos eventuais do museu por esse motivo. Nos últimos três anos, a verba anual de 515 mil reais não era repassada plenamente pela universidade, e o montante estava sendo reduzido a 300 mil.
Olhando os números lado a lado, é drástica a diferença de investimento dada para as diferentes instituições públicas de interesse cultural na mesma cidade. Poderia caber aqui uma série de ponderações a respeito dos principais beneficiários na construção dos museus da Praça Mauá, entre empreiteiras e políticos da cidade. Ou ainda questionar o valor cultural dos empreendimentos, que se destinam a públicos diferentes e abrangentes. Mas, a título de reflexão, ficamos com a pretensão do Museu do Amanhã em pensar um futuro que ainda está por vir. Tal característica não deixa de ser sintomática do tempo em que vivemos e das escolhas que são feitas para a cultura do país.
A grande presença dos patrocinadores neste museu paira sobre o interesse pela novidade e o “mover sempre em frente”, sintoma amplamente presente na sociedade contemporânea. Nesse sentido, há uma confluência de valores do pós-capitalismo e uma sociedade imediatista, imaterial e ansiosa por novidades. Os novos negócios condizem com o futuro próximo, com a mudança tecnológica, com as adaptações várias pelas quais os seres humanos ainda precisaram passar para se tornarem mais competitivos e ainda de “valor funcional” quando comparados a máquinas e robôs altamente inteligentes. Esse anseio pelo novo, que gera inquietações e interesses dos mais variados, fez o mote principal para um “museu” que fisicamente não preserva ou guarda nada, já que a grande maioria das exibições da instituição são interativas ou exibidas em grandes telões com informações sobre o planeta e as transformações por que passamos.
A imaterialidade do museu é sintomática quando comparada ao descaso dado pela materialidade de acervos que se perdem pela má preservação, incêndios e falta de reparos. A perda também é sinal de um tempo que pensa para o futuro e, nessa dimensão, aponta o interesse por aquilo que virá. O que mais importante surgirá como estratégias para bons negócios, para novas startups, para o surgimentos de tendências de consumo, para indicativos que movimentem os mercados de ações e que apontem o caminho para os empregos do futuro.
Do passado, fica uma espécie de dever a ser cumprido que, quando existe, chega muitas vezes com atraso. O pouco interesse político-econômico que os acervos históricos têm hoje são reflexo de uma cultura que menospreza o passado em busca de uma incessante procura por respostas de um futuro próximo. Interesse que invade as discussões na mídia, na política e nas escolas. E se nada for feito para que de fato sejam revistos radicalmente os valores desse capitalismo imaterial que hoje vivemos, o patrimônio cultural esquecido nos museus, que persistem e agonizam com falta de verbas, continuará em risco.