Infame

Cenas da Cultura: “Ah, tá, você é daquelas que defende artista vagabundo que usa nosso dinheiro pra fazer show pra político?”.

Para o fazedor de Cultura, talvez esse debate sobre fundos patrimoniais e a criação da ABRAM não faça sentido, já que na luta do dia-a-dia pelo arroz e feijão na mesa, ele mantém muitas vezes de forma voluntária sua tradição, sua música, suas histórias. Esse debate faz parte do todo: nossa Cultura reside não somente nos pilares de todas as construções históricas do Brasil adentro, está no bater dos tambores, nas rendas e nos cânticos, no rodar da saia da coreira, da expressão corporal da dança, na contação de histórias, no fazer cultural e artístico de todas as expressões: funk, samba, rap, hip hop, circo, teatro, música erudita. Urge convocar a sociedade para falar e agir na conservação de nossos saberes como sociedade civilizada e democrática.

Por Ana Nogueira |  01 de outubro de 2018

CENA 1: O UBER

Papo vai, papo vem, trânsito, buzinadas, chuva. A Sampa de sempre no horário do rush.

Inquirida sobre meu trabalho, respondo: produção cultural. Ah, tá, você é daquelas que defende artista vagabundo que usa nosso dinheiro pra fazer show pra político. – essa é frequentemente a afirmação que recebo dos interlocutores.

Suspiro! Tento simplificar o que é Cultura, o que são as leis de incentivo e o trabalho dos artistas e do produtor.

Termina a viagem, agradeço e peço para o interlocutor se informar mais, pesquisar, perguntar e coloco-me à disposição para ajudar, caso ele tenha dúvidas (com uma ponta de esperança que tenha conseguido mudar a percepção dele e de tantos outros).

CENA 2: O TAMBOR E A SEDE

Abre o ensaio de um grupo de cultura popular, ao término, reunião dos integrantes para discutir as dinâmicas, as formas de sustentabilidade do grupo. (É gente, artista paga aluguel, água, luz, internet, como todo mundo).

Não há recursos das leis de incentivo, não há patrocínio. Então, toca produzir uma festa em um espaço onde o ingresso e o consumo de alimentos e bebidas possam fazer caixa para as contas do mês.

A festa acontece, o caixa é fechado, as contas quase todas pagas. Alivio? Não. O próximo encontro servirá para bater o tambor, rodar a saia, manter as tradições vivas e descobrir formas de não deixar morrer essa manifestação cultural.

CENA 3: O FOGO

Grupo de produção cultural nas redes sociais: cenas de uma tragédia anunciada – o incêndio na Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro.

Passa um filme pela cabeça, todas as vezes que fui ao Rio, não consegui entrar no Museu Nacional. Sempre dei de cara com a porta fechada. E naquele momento, chorei. Pelos pesquisadores, pelo nosso patrimônio, pelo descaso.

Leio outros ativistas que resumem o ocorrido e posicionam-se: decidem que a partir deste momento levarão seus filhos em todos os museus.

Sei…

CENA 4: A VOZ DO BRASIL

No meio de uma produção, ouvindo o rádio, percebo os primeiros compassos de Guarnieri: eis a Voz do Brasil. O locutor anuncia a assinatura das MP’s (Medidas Provisórias) que anunciam o fim do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) e criação da ABRAM (Agência Brasileira de Museus), bem como estabelecem as condições para a criação dos fundos patrimoniais.

Susto? Não.

Dias antes acompanhei um debate sobre a questão dos museus e sua manutenção e ouvi de um dos participantes a defesa do tal fundo patrimonial.

CENA 5: JUNTA TUDO E TENTA ORGANIZAR O PENSAMENTO

Porque todas essas cenas tocam-me a ponto de escrever sobre Cultura e Mercado? A resposta não é simples e não é fácil: ausência de Política Nacional de Cultura.

Fechar uma orquestra porque o posto de saúde não tem remédios é um dos sintomas. Vejam, uma orquestra, com orçamento baixo, gera pelo menos 50 empregos diretos e um sem número de empregos indiretos (e informais). Essa mesma orquestra realizando uma apresentação em um parque de forma gratuita gera renda, desde o vendedor oficial do local até o ambulante carregando seu isopor com água e o vendedor de pipoca.

É, de maneira simplificada, um ciclo de renda. O músico é pago, recolhe imposto, o vendedor compra insumos e vende produtos, recolhe impostos, gera renda para o Estado. Um balanço oficial do Ministério da Cultura estima que a cadeia produtiva da Cultura corresponde a 4% do PIB brasileiro. Isso com base em dados oficiais, notas fiscais emitidas, impostos pagos. Mas por trás de tudo isso, existem inúmeras ações e pessoas envolvidas na informalidade.

Quem trabalha com Cultura sabe disso, só que essa não é a realidade da população brasileira em geral. A Cultura nos transpassa em todos os momentos e talvez por isso seja tão desconhecida e banalizada.

Uma lei de incentivo como a Rouanet tem sido duramente criticada. Não entro aqui nos méritos e deméritos específicos. Outros escrevem com conhecimento de causa sobre o tema. Também não vou alongar-me sobre os demais fundos existentes no Ministério da Cultura (MinC), basta observar a dotação orçamentária de todo o ministério e inferir a enormidade de museus, manifestações culturais, patrimônios e demais ações que existem em nosso Brasil para saber que não há recurso estatal suficiente para todos.

De forma ligeira, falemos sobre essa forma de incentivo – a “Rouanet”. Criada durante o governo Collor tem seu auge nos governos dos presidentes Fernando Henrique Cardoso e Luis Inácio Lula da Silva. (Existem diversas discussões sobre a extinção do MinC durante o governo Collor, sobre as leis de incentivo, dotações orçamentárias do Estado para a Cultura, são debates e temas que dão margem para outras tantas reflexões).

Um aparte: reduzir o orçamento da Cultura já tão incipiente em prol de outras áreas como saúde ou segurança é realmente relevante? Para exemplificar, este é o orçamento da União para 2018 e o volume de recursos destinados a Educação, Saúde e Cultura (somos um risco no gráfico!):

Tendo em vista o limitado orçamento do Ministério da Cultura, a lei surgiu como uma forma de estimular os cidadãos e empresas a investir e promover a Cultura por meio do incentivo fiscal.

Em linhas gerais, o proponente (produtor/museu/artista) apresenta ao MinC seu projeto, justificando a importância, apresentando carta de compromisso dos participantes e integrantes do projeto, seus currículos, histórico do proponente, motivação, público abrangido, orçamento (que é muito complexo e segue modelos e valores padronizados). Esse material é avaliado pelo Ministério da Cultura e após aprovação, o proponente recebe o aval para captação. O que isso significa? Que o trabalho ainda não começou! A partir daí, o proponente precisa apresentar o projeto para as empresas e cidadãos para convencê-los a patrocinar o projeto. Os interessados, devem depositar o valor de aporte em uma conta em instituição bancária aberta pelo MinC e recebem em contrapartida um recibo de mecenato que deverão juntar em suas declarações de imposto de renda para abatimento do valor a pagar (observe que existem limites e condições para que o patrocinador invista em Cultura).

Alto lá, ainda não é só isso! O proponente precisa captar 25% do valor total do projeto para que os valores sejam liberados. Isso significa que, desde o momento da concepção do projeto, apresentação ao MinC, captação, e até a liberação dos recursos, o grupo vive de ar e felicidade, pois não tem acesso a quaisquer valores do projeto. Com um detalhe: se o proponente atinge o percentual mínimo de captação (25%) ele ainda é obrigado a produzir e apresentar o projeto em sua totalidade, assim, fazer a limonada com 1/4 de limão. Lembrando que os projetos incentivados são obrigados a contrapartidas, como preços populares de bilheteria, doação de materiais, entre outros.

Por fim, executado o projeto, contrapartidas dos patrocinadores e da lei cumpridas, ainda há a prestação de contas, com apresentação de todas as notas fiscais, contratos, fotos da realização do projeto e relatórios para o Ministério e para os patrocinadores. A prestação de contas é avaliada pelo MinC e se houver qualquer questionamento o proponente responde por isso.

O MinC, no momento de aprovação do projeto para captação, não atenta ao mérito do projeto (seja uma biografia de um artista do “mainstream” ou a produção de um material sobre tradição popular). O olhar é sobre a demanda cultural, sua abrangência e orçamento (se os orçamentos previstos estão com valores de mercado). Outra questão é relativa aos patrocinadores: como convencê-los da importância e relevância de patrocinar um projeto de cultura popular versus um artista consagrado? A parte da beleza do direito de escolha, da democracia, entra em cheque quando se põe na conta como convencer uma empresa a patrocinar um projeto que trata da nossa Cultura e da nossa história, vide as tentativas de captação via Lei Rouanet promovidas pelo Museu Nacional que foram infrutíferas, comparando com um show de um artista ou festival do “mainstream” que terá visibilidade muito maior. A decisão está na mão da sociedade, ou melhor, do mercado.

FIM DO ATO?

O Museu queimou, o couro do tambor rasgou e o dinheiro não veio. Ao apagar das luzes, o atual governo edita duas medidas provisórias atendendo demandas de grandes instituições culturais. Como entender isso?

Conversei com interlocutores de diversas áreas da Cultura e até agora não consigo chegar a um termo comum. Diante da falta de discussão, do momento eleitoral, das questões econômicas, não há consenso e nem questionamento na mídia. Como de praxe, a Cultura aparenta ser um tema quaternário (senão mais!) para nossa sociedade.

Venho de um longo trabalho vinculado a instituições privadas de Cultura e por um lado minha experiência pende a aceitar e acreditar na constituição de fundos patrimoniais. E o que são tais fundos? Os fundos patrimoniais – endowments – são característicos das instituições americanas de ensino e cultura. São pessoas físicas e empresas que efetuam doações para a constituição de um fundo financeiro onde o rendimento de aplicações é utilizado para ações específicas – aquisição de obras, manutenção de prédios/instalações, criação de bolsas de estudo ou pagamentos em geral, como mão de obra, luz, água, enfim despesas comuns, entre outros. Esses fundos no caso do Brasil, não estariam vinculados à nenhuma lei específica de incentivo. Ainda não tive contato com pessoas especializadas em direito tributário para compreender o impacto dos impostos que devem ou não ser retidos nesse tipo de doação.

Minha sensibilidade pende, por outro lado, a temer que esse tipo de ação tire cada vez mais a responsabilidade do Estado na condução de uma Política Nacional de Cultura, em prol daqueles que não estão no “mainstream”.

Na esteia do fogo, a criação da ABRAM como serviço social autônomo sem debate com servidores do MinC, com a sociedade civil, com o SEBRAE (parte do orçamento do SEBRAE será destinado a ABRAM), visando atender empresas e entidades, possíveis doadoras para a gestão de museus, é questionável. Ademais, a ABRAM também ficará responsável pela gestão dos recursos de países e órgãos internacionais que se pronunciaram em favor da recuperação do Museu Nacional.

Para o fazedor de Cultura, talvez esse debate sobre fundos patrimoniais e a criação da ABRAM não faça sentido, já que na luta do dia-a-dia pelo arroz e feijão na mesa, ele mantém muitas vezes de forma voluntária sua tradição, sua música, suas histórias. Esse debate faz parte do todo: nossa Cultura reside não somente nos pilares de todas as construções históricas do Brasil adentro, está no bater dos tambores, nas rendas e nos cânticos, no rodar da saia da coreira, da expressão corporal da dança, na contação de histórias, no fazer cultural e artístico de todas as expressões: funk, samba, rap, hip hop, circo, teatro, música erudita. Urge convocar a sociedade para falar e agir na conservação de nossos saberes como sociedade civilizada e democrática.

Somos o Bendegó! Resistimos ao fogo, ao descaso, estamos aqui e estaremos sempre.

 

 

Ana Nogueira

Ana Nogueira

Ana Nogueira é produtora e gestora cultural. Generalista por convicção, pesquisadora por natureza, produtora por paixão. Do erudito ao popular, gosta de ouvir, de descobrir e debater. #produtornãochora.