Foi muito difícil, depois do episódio do incêndio do Museu, manter a ideia original deste texto. Não porque a ideia em si tenha mudado, mas porque a imagem do Museu em chamas e do que restou dele me representa muito mais do que eu poderia imaginar.
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O assunto é Arte e Mercado e o meu primeiro sentimento é de um desejo profundo e legítimo que Arte fosse só Arte e Mercado fosse só Mercado, mas os ideais, os conceitos e as ideias na cultura geral do nosso país estão tão confusos que parece que falo e sinto em grego. É claro que todo contexto tem a sua exceção, porém, em linhas gerais, hoje, a minha arte, antes de ser arte tem que ser mercado e isso é um conflito tremendo para quem, no coração, é artista. E, sendo artista, busca, incansavelmente, maneiras de expressar.
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Volto ao museu. É impossível não voltar ao museu e calar o desejo de gritar ao mundo e dizer quem sou, como cheguei até aqui e o quanto a minha arte queima, diariamente. Nem eu tinha encontrado palavras para descrever tão bem o meu sentimento. E, de repente, uma imagem disse tudo. Validou a minha luta, acolheu a imensa pilha de papéis que moram embaixo da minha bancada com ainda mais amor.
Começarei do princípio, porque ele é basicamente o fim. O fim pelo fato de o raciocínio da grande maioria pessoas acabar junto com o instante em que acabam de ler o que vou escrever e a verdade, mais doída, é que isso acontece porque já queimou quase tudo. Eu herdei, da minha grande professora de canto, a norte americana radicada no Brasil Martha Herr, um imenso Acervo de Canção de Câmara Brasileira.
Oi?!? Canção …de quem?
Antes desse furdúncio tecnológico acontecer, uma forma muito comum de se fazer música era na sala de casa, com partituras publicadas (inclusive em jornais!). Essa música era executada tanto por leigos quanto por profissionais – e daí surge o termo “de câmara”, por ser uma música realizada em ambientes pequenos, íntimos. Acontece que a formação musical era muito, muito diferente dessas que temos hoje. E esse gênero musical cresceu, muito, muito, muito e hoje já não se ouve falar dele. Sumiu. Queimou de muitas maneiras. Foi completamente abafado pelo tal mercado.
O acervo que herdei é a ponta de um iceberg que não se vê e não se ouve e que está em constante risco de extinção pelo iminente potencial de desmonte da cultura, que de tão aquecida e deturpada pelo mercado do entretenimento é capaz de derreter tudo o que hoje mora embaixo da minha bancada, ops, do nosso mar. Apresento-lhes: Acervo Martha Herr – Canções Brasileiras, em números: mais de mil canções brasileiras; mais de duzentos compositores; mais de quinhentos poetas/textos recolhidos.
Já ouviu Manuel Bandeira cantar? Cecilia Meirelles? D. João? Barão de Paranapiacaba? Carlos Drummond de Andrade? Casimiro de Abreu? Dulcinea Paraense? Machado de Assis? Francisco Moura? Erotides de Campos? Vinicius de Moraes? Esses são nossos poetas… todos vivos, “Vivinhos da Silva” debaixo da minha bancada… e sabe quem deu vida a eles? – e nesse momento faço questão de citar compositores vivos sempre ao lado dos nossos grande compositores que já vivem do lado de lá: Você conhece Achille Picchi? Edmundo Villani Cortes? Jorge Antunes? Babi de Oliveira? Marllos Nobre? Ronaldo Miranda? não… Mas talvez conheça Villa Lobos, Camargo Guarnieri, Souza Lima, Claudio Santoro e Carlos Gomes…
São canções lindíssmas, são historias de amor, são História do Brasil, são cantigas infantis, são canção brasileira. Escritas em sua grande maioria para canto e piano, mas temos muitas outras formações, como o nosso hoje tão tradicional voz e violão. Aqui, embaixo da minha bancada, redescobri como cantar, redescobri o meu canto, compreendendo cada som do nosso belíssimo e peculiar idioma, o português brasileiro, em duas pesquisas financiadas pela Capes (que, oremos, continue a fomentar a pesquisa por muito tempo), de mestrado e de doutorado, que me levaram a compreender a arte de uma maneira muito mais ampla.
Cantar em português trouxe para a intimidade da minha voz o sentimento e o orgulho de ser brasileira, trouxe o desejo de ensinar o canto sem ser “lírico” ou “popular”, mas o canto que rompe as barreiras em busca de identidade e vai além: acalenta a alma, alimenta o espírito e traz vida, esperança e paz em tempos tão sombrios como os os que vivemos. Um bálsamo em três minutos. O tempo de uma canção. É só esse o tempo que ela te pede para entrar na sua vida e nunca mais sair. E sendo assim, linda, poderosa, ela é “só arte” e eu sei. E como é importante que ela exista na sua vida, mesmo que você ainda não saiba disso…
Mas quando vi o museu queimar, eu chorei e foi dessa maneira que eu me senti:
“Furiosa tentando escrever. Assistindo o museu queimar. O museu me representa, me representa na maneira como a grande maioria das pessoas olha para o museu – como sendo velho, inútil e sem serventia – desatualizado por assim modernamente dizer – me representa pelo abandono, me representa pela meia dúzia que por aquilo ali batalha, me representa pelo apoio superficial no momento de crise, me representa pela falta de atenção, me representa pela falta de cuidado, me representa por ser tão facilmente levado ao pó e, por assim dizer, ser apagado da história. Me representa pela obrigação de se reinventar em função do Mercado e não por sua nata vocação de reinventar a si mesmo. E mesmo assim, feito cinza, ele o fará, reescrevendo e registrando uma parte muito, muito triste da nossa história.”
Minha muito mais que professora, foi, mais uma vez, visionária. Deixou a sua história impressa e a história do país que a acolheu tão calorosamente, com o tremendo receio de que, pela falta de incentivo, de infra-estrutura, de condições dignas e valorosas de trabalho, o seu acervo, queimasse.
E você ai, quer mudança? Façamos algo ‘novo’. Te convido a ficar comigo por mais três minutos e ouvir uma belíssima canção…
Papagaio Azul – letra e música de Edmundo Villani Cortes (Festival Internacional de Campos do Jordão)
Canção de Cristal, de Heitor Villa Lobos e Poesia de Murillo Araujo
Senhora Dona Sancha, letra e musica de Waldemar Henrique sobre melodia popular
Canção de Cristal, poesia de Murillo Araujo
Onde a menina, a inocência
Que acendia a terra e os mares
O sorriso cuja essência
Enchia de azul os ares
Fugiam, se aparecia,
As sombras e os noitibós
Era a manhã de alegria
com rios claros na voz.
Era o que mais ninguém era
Mudava toda penumbra
nesses jardins de quimera
Que o sol cantante deslumbra,
Em sua presença havia
Rosas, orvalho, esplendor…
Era a manhã de alegria
Toda em pássaros de amor.
Auras leves, sons de sino, (ouro)
ouro e lilaz pelos vales
Tudo trouxe ao meu destino
Mudando em luz os meus males.
Trouxe o milagre do dia.
Para que estrela emigrou?
Era a manhã da alegria
Porque, mal veio acabou.
Ah!