Infame

O Meu, o Seu e o Nosso

"Sei que adormeci porque despertei, e dessa vez confiro as horas na tela do celular. 4:04. Será que está molhado, a fralda vazou? O choro aumenta de volume e eu me sinto cansada, injustiçada, fracassada. O que estamos fazendo de errado? Quero ir ao quarto do Pablo, quero pegá-lo, acalmá-lo, amamentá-lo, como se o apaziguando eu estivesse fazendo o mesmo comigo. Não vou: Durval e eu conversamos de novo esta semana e decidimos que, de madrugada, o Pablo não precisa mamar, e então quem o acode é meu companheiro".

Por Eder Camargo e Natalia Timerman |  30 de agosto de 2018

SEGUNDA-FEIRA

Ele chora. Espero um pouco, quem sabe não volta a dormir. O som estridente persiste. Tento não olhar as horas na tela do celular para não despertar de todo; meu corpo sabe que não faz muitas horas que adormeci. Ao meu lado na cama, no mesmo calor, meu companheiro não despertou. Sinto inveja de sua capacidade de ignorar o choro do nosso filho. Para mim, isso é impossível: acordo imediatamente, reconheço o som no meio da noite de um jeito tão abrupto que quase escuto também o silêncio interrompido. Durval, vai lá. O Pablo acordou. Ele se move lentamente, ainda despertando, como se conferindo que o choro está mesmo lá. Eu, deitada na mesma posição, escuto o som abafado dos seus passos em direção ao quarto do lado. O choro primeiro aumenta, é a mim que o Pablo quer, ao meu peito. Depois de um tempo — minutos? Meia hora? —, o volume diminui, os soluços ficam esparsos, e antes que se faça silêncio de novo, já estou dormindo.

Quando o choro recomeça, abro os olhos e vejo meu companheiro deitado ao meu lado. Não é o mesmo choro. Será que vou eu? Seguro o ímpeto de olhar as horas, não tenho ideia de quantas sejam, mas pela escuridão na fresta da janela e no corredor, ainda é madrugada. Por que será que ele acordou de novo? Estará com frio? Com calor? Algo dói? Não é possível que meu companheiro não acorde, o choro é alto. Será sede? Durval. Durval. O Pablo está chorando de novo, escuta. Quer que eu vá? Dessa vez, fico acordada, de olhos fechados, buscando o sono, enquanto ouço variar as nuances do lamento do nosso filho. Ainda estou acordada quando o Durval volta para a cama depois de acalmá-lo, e logo escuto o ritmo pesado da respiração de quem já está dormindo.

Sei que adormeci porque despertei, e dessa vez confiro as horas na tela do celular. 4:04. Será que está molhado, a fralda vazou? O choro aumenta de volume e eu me sinto cansada, injustiçada, fracassada. O que estamos fazendo de errado? Quero ir ao quarto do Pablo, quero pegá-lo, acalmá-lo, amamentá-lo, como se o apaziguando eu estivesse fazendo o mesmo comigo. Não vou: Durval e eu conversamos de novo esta semana e decidimos que, de madrugada, o Pablo não precisa mamar, e então quem o acode é meu companheiro. Se eu for, vai ser muito difícil fazê-lo parar com o berreiro sem dar o peito, devo exalar cheiro de leite (espero que o único a sentir seja nosso filho). Dessa vez, não preciso despertar o Durval, vejo-o cambaleando, alguma raiva nos passos, em direção ao quarto do lado.

Ainda bem que nossos outros filhos não acordam.

Não chego a dormir novamente. Os compromissos do dia estalam na minha cabeça, tenho tanto sono que o próprio cansaço me impede de adormecer. O cansaço, ele mesmo um acontecimento ou o formato da minha ansiedade, um amarrotado por detrás dos olhos, na voz rouca e na sede que sei que terei de dia. 5:22 o choro recomeça, o combinado é que só a partir das 5:30 eu posso amamentar, mas arredondando é quase isso, e não vale a pena acordar o Durval por causa de 5 minutos. Me levanto, exausta, acesa, e me direciono para o quarto do Pablo. Ele está de pé, apoiado na grade do berço, e o choro diminui assim que ele me vê. Pego-o no colo, abraço-o, sento na poltrona e ofereço o peito, que ele pega na hora, sedento. Escuto e sinto seus goles, fecho os olhos, mas sei que não vou dormir. Ele está mamando o outro peito e quase adormeceu quando escuto o despertador vindo do nosso quarto. Pipipipipipipipipi.Pipipipipipipipipi. Pipipipipipipipi. O som continua. Não é possível que nem com a estridência do alarme o Durval não acorde, eu me surpreendo de novo, como toda manhã. O som finalmente cessa, Pablo está desperto e eu calculo mentalmente se é melhor descer para fazer o café ou já trocar o Pablo, a fralda e as roupas, para que o Durval não se atrase para o trabalho. Decido trocá-lo, a fralda está cheia, Pablo reclama um pouco para ficar deitado no trocador, tento distraí-lo com um boneco que está ali, ontem funcionou, hoje ele não dá a menor bola para o brinquedo, as coisas com os bebês são assim, caoticamente imprevisíveis, tentamos todos os dias encontrar padrões, regras, indícios, nada funciona, todos os dias são um atordoante começo.

Estou segurando as perninhas gordas do Pablo para cima para passar hipoglos quando o Durval surge sonolento na porta, bom dia, termina aqui que eu vou fazendo o café. O Vicente já acordou e ruma para o quarto do Pablo, ótimo, penso, com o Vicente ele se distrai, está aí uma constante, o irmão, mas que só fica conosco uma vez por semana e dois finais de semana por mês. Lino ainda dorme, vou acordá-lo só daqui a uns 10 minutos.

Coloco a água para ferver enquanto faço os sanduíches do café da manhã e os do lanche dos meninos, deixo o pó preparado no filtro, ponho a mesa, pego os sucos para o lanche, ao escutar o apito da chaleira desligo o fogo e passo o café, Durval desce com o Pablo e eu peço que ele acorde o Lino por favor, em pouco tempo estão todos sentados, trocados, tomando seus cafés, Pablo em seu cadeirão segurando um pedaço de pão que alguém deu, eu ainda de pijama, olho as horas no microondas, posso já chamar o táxi?, o Durval diz que daqui a uns cinco minutos é suficiente, terminamos o café, enquanto Durval prepara a mochila do Pablo eu troco a fralda dele de novo (ele fez cocô), Lino, vai escovar os dentes, Vicente, tá frio, coloca um casaco, o táxi chegou, vai descendo, Vicente, todo mundo escovou os dentes?, tchau, tchau, bom dia pra vocês, consigo ir ao banheiro depois que Durval sai com o Pablo, já estou atrasada para levar o Lino e ir trabalhar, me troco correndo, apresso o Lino para descermos e então, finalmente, ligo o carro rumo ao início do dia.

***

Essas noites de trabalho têm sua magia. Ainda que exijam atenção de um corpo já gastado pelo dia, o silêncio e esse monólogo de ler os textos de meus alunos me entretêm. Ouço uns resmungos ao fundo. Paro durante alguns instantes, volto devagar a teclar, mas com toques mais sutis, como se meus movimentos estivessem colaborando para o sono inquieto do bebê que temos em casa. Os grunhidos somem e mergulho de novo. Adoraria poder dormir imediatamente, mas preciso acabar essa correção, sem ela a aula de amanhã cedo não acontece. O choro ao fundo recomeça, dessa vez mais firme e a intensidade vai aumentando. Vou esperar mais um pouco, vou terminar esse trabalho. Subo as escadas, agora já despreocupado com o rangido dos degraus. Chego ao quarto e vejo a mesma cena dos últimos dez meses: um bebê chorando de pé, apoiado no grade do berço. Quando ele me vê, o choro aumenta. Não era eu quem ele queria ver. Ele quer mamar. Quer o aconchego de ser amparado no colo de que conhece o cheiro e a levada do coração. Mas ele tem a mim. E eu tenho a ele naquele momento. A casa precisa dormir e com aquele choro, ninguém dorme. Cumpro o ritual: abro o mosquiteiro, faço um carinho em sua cabeça, me abaixo pra ficar na altura dele e dou um abraço. Ouço sua respiração, tento sentir se está molhado, tento acalmá-lo. Ultimamente, ele sai dos meu braços e, sonolentamente, se deita de novo em seu colchão. Meio sem posição, resmungando, se esfrega contra o lençol, vai se aprumando de novo, geralmente de bumbum pra cima e a cara enfiada bem no encontro entre as madeiras formadas pelo berço. Me sento e fico percebendo pelas nesgas de luz que vêm do quintal ao fundo se seus olhos estão se fechando. Passo minhas mãos pelas frestas da grade, acaricio devagar suas costas. A respiração diminui a frequência, fica mais profunda, os pequenos movimentos vão sumindo e o corpo para. Fico ali ainda alguns instantes, li em algum lugar que o sono de bebê é diferente do nosso, parece ter ciclos mais curtos e repentinos. Várias vezes ele levanta a cabeça e procura alguém entre as sombras desenhadas pela grade. Dessa vez, foi. Levanto devagar, evito a madeira que geme posicionada no caminho óbvio da porta do quarto. Ponta dos pés, corredor, voltar ao trabalho pela escada, agora descida com mais cuidado, pois os rangidos gritam nas madrugadas. Concluo enfim a correção, depois de uns 40 minutos mais. Tomo banho e vou dormir.

Acordo umas duas horas depois com a Lucia me chamando. Quando fico acordado até mais tarde, demoro mais para ouvir o choro do Pablo. Já foi pior, meu reflexo melhorou ao longo dos últimos meses. Retomo os passos a caminho do choro. Entro e lá está. Ele sacode forte o berço quando vê minha silhueta na porta do quarto. Não era quem ele esperava. Afasto o mosquiteiro, me abaixo até seu corpo ofegante, sinto sua cabeça contra meu corpo. Ele chora forte. Ficamos alguns segundos assim. Apalpo seu corpo a procura de alguma umidade. Viro o rosto e falo ao seu ouvido, baixinho: vamos dormir, deita. Ele se afasta de mim, deita sobre a própria perna enquanto os olhos entreabertos se esfregam contra o colchão. Eu novamente me sento no apoio dos pés da poltrona de mamar e procuro entender o que está acontecendo. Dessa vez, ele não encontra posição e se senta sobre o colchão enquanto chora. Volto a colocá-lo deitado. Ele se irrita quando faço isso. Lemos em algum outro lugar que isso era uma atitude recomendável com bebês que lutam contra o sono. Sim, nosso filho luta contra o sono. Fico pensando no aspecto positivo dessa situação, tentando dissipar minha irritação de quem estava no meio do sono e acordou aos berros. Talvez ele só goste da nossa companhia, por isso quer ficar acordado. Ele se senta um sem número de vezes. Eu sempre reposiciono seu corpo contra o colchão. Não tem sido fácil fazer isso, ele tem ficado forte, às vezes se agarra às grades. Devagar, o choro vai diminuindo e ele vai cansando de se levantar. Penso que, talvez, ele esteja com sede. Quando ele dormir, eu vou colocar água na mamadeira dele, caso ele acorde de novo, posso oferecer, eu penso. Lembro que preciso ir ao banheiro, estou bem apertado. Vou aguentar, ele está quase dormindo de novo. Eu já estou sentado novamente no assento dos pés da poltrona, ele já está com a cabeça contra o colchão. Seus olhos estão fechando. Falta pouco. Cubro novamente, fecho o mosquiteiro e sigo para o banheiro, agora sem conseguir ter muito cuidado nas passadas. Em seguida, aliviado, encho a mamadeira de água. Deixo no quarto dele, sobre a cômoda. Dou mais uma olhada. Ele suspira e dorme profundamente. Não parece aquele que urrava faz pouco tempo.

Em menos de uma hora ele acorda de novo. Novamente sou chamado pela Lucia. Estou cansado, não ouvi de novo o choro dele. Por que muitas vezes pais demoram mais a perceber o choro de seus filhos? Será que tudo o que fazemos é fruto de um condicionamento ou existem diferenças incontornáveis entre as funções exercidas pelas mães e pais? Não sei responder, essas coisas tilintam na minha cabeça. Tanto quanto não sei o que acontece com o Pablo para acordar várias vezes em uma mesma noite. Por que ele está acordando tanto hoje? Não é sempre assim, mas tem noites, como essa, que são longas, muito longas. Retomo o caminho, trombo em uma coisa ou outra, e sinto o frio no incômodo das costas de quem ficou muito tempo sentado ao computador. Na porta do quarto, ele me recebe com o aumento de sua queixa. Pego a água sobre a cômoda e ofereço. Ele empurra e faz o movimento de bater na mamadeira. Onde ele aprende essas coisas? Nunca levou um tapa, ninguém o ameaça de bater. Me debruço e o abraço. Ele diminui a intensidade do choro. Ofereço água novamente, ele aceita, bebe e fecha os olhos enquanto suga o bico com uma boca voluntariosa. Toma alguns goles. Então, se deita sozinho e procura sua melhor posição. Vai dormir rápido agora. Lembro de uma ideia para apresentar às turmas as correções que terminei no início da noite. Sentado no encosto dos pés, fico admirando o lento adormecer dele. Preciso escrever a ideia que tive. O que deu na minha cabeça para bancar ter mais um filho? Eu gosto de me doar aos outros, acredito nessa ideia tola de que quem se doa aprende a cuidar de si mesmo. Ele levanta novamente a cabeça e procura se há alguém ali. Penso que quando ele faz esse movimento de acordar logo em seguida de adormecer, é porque seu sono não se estenderá por muito tempo. Ele logo acordará. Cubro novamente, fecho o mosquiteiro. Sigo ao caderno para escrever a ideia. Olho o relógio, 4:40. Todos devem estar de pé em um pouco mais de uma hora. Volto pra dormir o tempo que resta.

Agora acordo com o choro dele sem ninguém me chamar. Estava dormindo profundamente. Olho o celular, 5:22. Chegou a hora de mamar. Viro para o lado e me aconchego com a sensação de dever cumprido, ainda que a noite tenha sido difícil. Aproveito os últimos minutos debaixo dos lençóis. Cochilo um pouco, mas levanto meio de súbito, com o alarme tocando. Receio chegar atrasado, hoje o Vicente está em casa e precisamos pedir um carro até 6:38, mais tarde que isso chegamos todos atrasados. Me troco e Vicente passa pelo quarto para dar bom dia. Chego no quarto do Pablo, Lucia troca o bebê. Sigo trocando o rapaz enquanto ela desce e vai preparar o café. Desço com Pablo, ela pede que eu acorde o Lino, eu subo de novo e o acordo. Enquanto tomamos o café, lembranças de tirar o lixo, fazer as compras, levar o leite do Pablo e arrumar a mala da escola são trocadas. Pablo come uma colher de mamão, logo em seguida cospe um pedaço de pão oferecido por mim. Vicente e Lino fazem uma piada-adivinha inventada por eles que tem uma resposta sem nenhum sentido. Lucia me conta que seu dia está cheio e ela está preocupada se vai dar conta de escrever o texto que precisa entregar.

Deu a hora. Lucia se oferece para chamar um táxi. Subo e arrumo as roupas do Pablo na mala da escola. Mudas de roupa quentes, outras de meia estação e ainda um body de manga curta. Calças a mais, ele sempre suja mais as calças. O táxi chegou, grita o Vicente. Filho, desce e pede pro táxi esperar. Pego minha mochila, a mochila do Pablo, seguro-o no colo e carrego o lixo. Abro o portão pelo interfone. Quando chego ao carro, jogo as bolsas no banco de trás e entro com o Pablo, pedindo ajuda pro Vicente segurá-lo um instante. Puxo uma conversa com o motorista e tento perceber se já o conheço, afinal pedimos um carro todo dia a essa mesma hora. Explico ao motorista que o Vicente seguirá o trecho final da viagem sozinho, afinal, Pablo e eu ficamos pelo caminho; nossas escolas são mais próximas. Pablo se diverte no caminho: imita os carros, se admira com o que vê pela janela e se diverte no colo do Vicente. Algo mágico, esses dois juntos. Chegamos à escola do Pablo, eu o levo para dentro. Hoje ele chorou. Nem sempre ele chora, mas hoje ele chorou ao se despedir. Saio, não tenho tempo. Entro 7:20 e só paro 18h40. Já são 7:16 e o dia nem começou.

JULHO

Estamos de férias, ambos. As crianças também. Menos o Pablo: a escolinha dele não para.

Estamos de férias mas precisamos trabalhar. O Durval precisa corrigir trabalhos, eu preciso escrever e ler algumas coisas – e mesmo que não precisasse, iria querer fazê-los: precisar talvez seja uma forma de poder querer. Sabe como é: consciência de mãe, sempre culpada.

Decidimos fazer viagens curtas com alguns dias entre elas para ficar em casa e trabalhar. Mas para isso, ou nos revezamos, ou trabalhamos quando o Pablo dorme (duas horas por dia, pouco para nós, ou madrugada adentro – eu não consigo, funciono mal depois que o sol se põe). Ou mandamos ele para a escola, e então temos tempo e silêncio. Com um bebê de pouco mais de um ano, que já anda, acordado, é absolutamente impossível fazer qualquer coisa. Ele exige atenção constante, ou porque quer, ou porque precisa (ou ambos, também, mas sem culpa, pelo menos por enquanto). Um piscar de olhos e o sal está todo esparramado pelo chão da cozinha ou o braço está molhado de água da privada ou a testa tem um calombo presenteado pela quina da mesa. Eu às vezes sinto que descanso quando vou trabalhar. Também sinto alguma culpa por isso.

O Lino está com o pai, o Vicente está com a mãe e eu acabo de deixar o Pablo na escola. Entro na casa silenciosa, Durval voltou a dormir, ainda são 8:30 e o dia inteiro pela frente é uma eternidade. Ler? Começar a escrever? Dormir? Lavar a louça, arrumar a casa, preparar a janta do Pablo, que chega no fim da tarde? Não seja louca.

Uma olhadinha no celular. Sei lá quem está viajando, fulano de tal estreou uma peça, beltrano teve insônia. Como sicrano está bonito, hein. Hoje tem uma festa, será? Não, Lucia, você tem um bebê, você não vai mais a festas, além de que hoje você precisa trabalhar e de noite dormir ou tentar dormir, que quase sempre o Pablo não deixa. 9:12. Me surpreendo por estar há quarenta minutos no celular, fazendo nada, ao invés de fazer qualquer coisa que preste. Sinto culpa, pra variar. Decido dormir, ficar juntinha do Durval, está frio, só um pouco. Mas quando eu me deito, ele se levanta.

Aproveito para tentar dormir. A cabeça não para. Pego um livro, combinei comigo mesma de terminar este antes de começar aquele outro, que preciso ler para resenhar. Leio algumas páginas até empacar em um parágrafo, pelo qual passo os olhos umas três vezes antes de me convencer de que não vou reter nada agora. 10:30. O Pablo deve estar dormindo na escola.

Levanto, sento diante do computador. Vou escrever um pouco, mas o computador me avisa que não há mais memória então fico abrindo arquivos antigos para serem apagados. Aproveito para pagar algumas contas. Hora do almoço. Já? Metade do dia já se passou e ainda não fiz nada.

Chamo o Durval para almoçar, ele diz que come na rua. Como qualquer coisa, volto para o sofá, agora essas leituras têm que sair. Leio um pouco. Adormeço.

Acordo feliz por ter dormido, é raro que eu consiga cochilar durante o dia. Confiro o celular, respondo a mensagens do pai do Lino, mando uma mensagem de voz para ele. Dou uma olhada nas redes sociais e de repente, quarenta minutos se passaram de novo. Coloco o celular para carregar bem longe de mim, no modo silencioso, e volto para o sofá. Três da tarde. Daqui a duas horas já pego o Pablo na escola. Ele deve estar brincando. Sinto saudade dele, sinto meu peito encher de leite.

Escrevo um pouco, um texto sobre maternidade.

Está na hora. Durval leva e busca o Pablo quase todos os dias. Nas férias, cabe a mim.

Quando volto com Pablo da escola, acabou-se o silêncio e o vazio.

***

Tenho um tanto de trabalho por realizar, ainda que esteja de férias. Levanto pensando em começar corrigindo as centenas de textos. Quando leio o que meus alunos escrevem, tenho ideias do que quero fazer nas aulas. Parece uma estratégia para me sentir seguro, mas essa tal segurança nunca vem. Estou invariavelmente me questionando sobre como abordar melhor um assunto, dar devolutivas mais rápidas, incluir um material que acabei de encontrar.

Acabo pegando um instrumento. Adoro estudar música. Mas minha disciplina caótica não me permite avançar além de certo ponto rudimentar. Ainda assim, estudar algo em que se é quase um néscio não deixa de ser uma lição de humildade. Não posso tocar alto, Lucia dorme. Depois de cantar baixinho um samba no surdo que celebrava o dia, vou para a sacada e grudo no celular.

Permaneço mais de uma hora lendo notícias. Admito, sou viciado. Leio as reportagens mais bobas possíveis. Tenho fascinação por novidades relacionadas a pesquisas e descobertas científicas. Também leio sobre política e não resisto ao noticiário esportivo. Em alguns momentos, abro até links de fofoca. Me sinto um lixo quando me vejo lendo novidades de uma celebridade qualquer. Passo muito tempo do meu dia pulando de um texto para outro. Mas vejo evolução no tempo que dedico a me informar, pois simplesmente abandonei a televisão. E se tinha alguma coisa da qual eu era dependente, era a televisão. Nessas horas assim, nas férias, sem nada pra fazer, bate aquela falta de ter um controle na mão e ficar babando na frente de uma tela.

Não sei, esses dias sem as crianças são um vazio só. Sinto saudades dos maiores. O Pablo está na escola. Tenho tanta coisa pra fazer que não sei por onde começar.

Acho que não vou corrigir nada hoje. Vou resolver aquele problema com o meu documento. Vou pegar uma fila infinita. Pagar algum valor qualquer no banco. Assim, ando pela cidade. Vejo gente. Pego ônibus, metrô. Ando de condução e me sinto multidão. Fico em silêncio e me escuto um pouco. Talvez me sinta melhor. Passar o dia na rua. Isso, sim, é férias.

TEMPO

– Como você está, flor?

(Naquela época, ele ainda a chamava de flor.)

– Grávida.

E então fomos deglutidos por um buraco no tempo. Lembramos do começo caótico da vida de uma criaturinha, tão adorável quanto exigente, das noites sem dormir, da introdução alimentar, do calendário vacinal, das reuniões de escola. Lembramos das dobrinhas nas coxas, do sorriso banguela, de adormecer com um ser todinho nos braços, das primeiras palavras.

Hesitamos. Há sempre um luto: justo agora, que nossos filhos mais velhos já tomam banho sozinhos, já fazem suas coisas e nos deixam fazer as nossas numa tarde de sábado? Justo agora, que tínhamos um fim de semana com, outro sem crianças (a vantagem de termos nos separado do pai e da mãe dos nossos primeiros filhos)? Justo agora, que estamos engrenados no trabalho, com novos projetos, pensando em mestrado, doutorado, viagens?

Poderíamos ter escolhido não, e respeitamos (algumas vezes invejamos) quem escolhe não ter filhos. Escolhemos sim. De novo. Mais um. O nosso. Mesmo que os outros dois também sejam um pouco e cada vez mais nossos.

Uma mistura de emoções antecipou, então, o que se atualiza constantemente sendo mãe e sendo pai. A gravidez, o que a envolve e rodeia, é um caos de amor, cansaço, medo, alegria, força e fraqueza.

Passamos a morar juntos, construímos uma rotina numa casa e sonhos comuns, tudo para esperar a nova chegada. Todos chegam com o que chega: o pai, a mãe, os irmãos, os avós, tios, o bairro, o mundo.

Nossos filhos mais velhos haviam, ambos, nascido de cesarianas. Optamos por um parto natural, que aconteceu com vigor e convocação à ancestralidade. Nosso filho nasceu na banheira, a mãe acocorada segura pelos braços do pai. Foi tão bonito (e na hora tão terrível, não podemos mentir) que, nas semanas seguintes, nos apaixonamos de novo por nós mesmos através do nascimento e do nosso filho. Quebramos o resguardo.

Inaugurou-se uma forma de nos conhecermos, nós como pais, com experiências anteriores definidoras e que inevitavelmente viraram parâmetros com os quais precisamos romper – é isso a chegada. A casa ganhou um ritmo, tem ganhado ainda, incessantemente, feito do tempo de cada um que vive lá, nós cinco (e os dois cachorros, apesar de ter gente que tem vontade de abrir o portão e deixá-los escapar, ops). Nossa casa, que queríamos que fosse linda, com os móveis que tĩnhamos e com os que ganhamos, e é linda, mesmo que ao lado deles sempre haja brinquedos e uma certa bagunça, tirando o ar possível de sobriedade, de solidez ou de que a vida é um filme com cenário arrumado.

Ter filhos é precisar de ajuda, e foi só com a cooperação do pai que a mãe pode voltar a atender logo, porque ele levava o Pablo para mamar nos intervalos, por semanas, por meses, pela eternidade circunscrita naquele tempo. A tia ajuda, os avós, na medida do possível; contratamos uma babá semanal para podermos sair (mas há quase um mês ela não vem, e quando vem, tudo o que queríamos era dormir).

Nos desapaixonamos como casal, e nos reapaixonamos, e nos desapaixonamos, e ter filhos é também essa busca pelo amor que escapa pelas brechas estruturadas da rotina, e também a busca do pai e da mãe pelo homem e pela mulher que nunca mais serão.

Ter filhos é lidar com o imprevisto, com a iminência do desabamento a que estamos todos sujeitos, sempre, mas que se escancara na febre que rui toda a organização do dia e então alguém não pode trabalhar, alguém fica, alguém cuida, e se lembra que o tempo – esse que passa para todos nós – se esconde atrás das repetições, da ordem, do que conhecemos, para se mostrar inteiro, descosturado e cru no crescer do filho que temos diante de nós.

 

 

Eder Camargo e Natalia Timerman

Eder Camargo e Natalia Timerman

Eder Camargo é professor e historiador, além de colecionador de ideias de pesquisa não enfrentadas. Acumula experiências como autor de materiais de ensino, mobilizador comunitário e pesquisador de histórias locais.

Natalia Timerman foi uma criança que disse à bibliotecária da escola querer ler todos os livros do mundo. Na mesma época, aos adultos que lhe perguntavam o que seria quando crescesse, respondia, sem hesitar, que escritora. Virou médica, virou psiquiatra, virou mestre em psicologia. Virou ela, adulta; mas ainda quer ler todos os livros do mundo. Sofre com essa e outras impossibilidades, e ainda jura que vira escritora.