Antes de tudo, acho legal balizarmos expectativas. Eu sou uma mãe de merda. E você, caso seja mãe, também é. Mas calma, deixe-me explicar o porquê.
Quando engravidei, automaticamente comecei a receber inúmeras dicas sobre tudo e sobre nada. É como se eu tivesse chegado a um novo universo, virgem ainda, e estava ali para absorver os vastíssimos conhecimentos das matronas mais experientes. Obviamente caí no erro de entrar em alguns grupos de mães no Facebook (sou dessas que acha que grupos de Facebook com mais de 15 pessoas são cilada) e ler muitos blogs. Mil coisas são ditas sobre maternidade nesses lugares, que ela é linda, é trabalhosa, você fica plena, você fica o bagaço, sua vida acaba, sua vida acaba de começar, porém a coisa mais essencial mesmo de saber ninguém te conta; ser mãe é saber a quem ignorar. Começando por mim e esse meu texto, se for o caso.
Mas por que ignorar?
Vendo como vários tipos de maternidades se desdobram na internet, cada vez mais aceito o fato de que esse assunto é motivo de guerra. Algumas mães usam a maternidade para se auto afirmar e não economizam saliva nem dedos para criticar outras mães que optaram por seguir caminhos diferentes, como se o ponto de vista do outro fosse um ataque ao seu e não apenas uma outra perspectiva.
Quis ter filho no hospital?
Mãe de merda.
Não quis juntar as férias na licença?
Mãe de merda.
Vacinou?
Mãe de merda.
Preferiu mamadeira ao copinho?
Mãe de merda.
Preferiu chupeta ao dedo?
Mãe de merda.
Anestesia ao invés de natural?
Mãe de merda.
E, no geral, essas mães sempre apelam para uma mesma coisa, a do “mais natural possível” e “instinto materno”, como se diminuir a outra mãe para conseguir ficar tranquila com suas próprias escolhas fosse algo bem natural também.
Então quero evoluir essa treta aqui e perguntar o seguinte: instinto materno?
Quando falamos em instinto, pressupomos algo inerente a nossa espécie, anterior ao nosso arcabouço cultural. Tipo instinto de sobrevivência, que faz você desejar ficar vivo e não gostar muito da ideia de morrer. Uma coisa legal sobre instinto é que ele existe em qualquer aglomerado humano que você estuda, independente de ser um grupo de uma metrópole global ou aborígenes australianos. Um exemplo disso é o incesto; a percepção de família, de papéis, varia de cultura a cultura, porém o incesto é, instintivamente, condenado em todas elas. Olhando o que se entende por instinto maternal, essa coisa que não é só a predisposição de manter a prole viva e alimentada, mas também remete a uma camada afetiva, o amor, o apego, e tentando encontrar correlatos em outras culturas, vê-se que a coisa não é universal. E, mais especificamente, existe principalmente em sociedades ocidentais ou sociedades que entraram em contato com culturas ocidentais.
Evoluindo só um pouco mais na treta, a sensação que tenho é que o conceito “instinto materno” é fruto do patriarcado por dois motivos. O primeiro me remete a versão do feminismo do início da segunda metade do século XX, que tinha uma necessidade de negar a maternidade. Para estas mulheres, a biologia era opressora ao colocar no sexo feminino a obrigação do gerar e cuidar. Negar a maternidade, então, era uma forma de se livrar dessas amarras genéticas. Onde enxergo o patriarcado aqui? A maternidade sendo vista como prisão não só na gravidez, mas em seu todo. O cuidar sendo visto como papel único da mãe, não entendendo o pai como uma entidade que deveria ser tão responsável pela prole quanto a mulher, não questionando a passividade paterna na criação dos filhos. O segundo é que as mulheres que reforçam essa ideia de que só as mães são capazes de cuidar e educar a cria, ratificam a desigualdade entre gêneros e a submissão feminina ao provedor masculino.
Resumindo, instinto materno é uma ideia normativa que pressupõe que o cuidado tem gênero e é anterior as construções culturais e não fruto delas. Então apelar para o “mais natural” ou “instinto materno” para oprimir outra mãe é tão superficial quanto anestesia. Mas volto agora para a questão de ignorar e deixo essa nova treta para depois.
Você tem sua vida, sua rotina, sua forma de ver o mundo. Pode ou não ter um parceiro. Sua família pode ou não estar perto para te dar apoio. Pode ou não precisar sair de casa para trabalhar. Pode ou não colocar na creche, ter babá, largar com avós. Enfim, cada uma tem um tipo de vida que demanda necessidades específicas. Lógico que algumas coisas vão coincidir entre todas as maternidades, tipo manter seu bebê vivo e limpo, mas os desdobramentos para cada mãe são diferentes. Por isso cuidado, muito cuidado, ao se deixar influenciar por certas dicas sem questionar, ao tomar como certo o que deu certo para outra mãe. Teste, teste formas diferentes de criar até achar a que melhor se adequa a você.
Eu poderia listar alguns exemplos aqui, mas quero contar apenas um.
Optei por um obstetra homem. Confiei no cara, ele foi obstetra de uma amiga muito querida e achei que ele tinha a energia que eu gostaria de ter perto de mim nesse processo. Fui criticada por uma mãe na minha escolha. “Mulheres que escolhem médicos homens querem suprir uma ausência paterna”. Acredito que essa mãe queria o meu melhor, que o comentário dela foi feito como quem oferece uma ajuda, mas uma ajuda não solicitada às vezes chega como perturbação.
Eu poderia tê-la ouvido, poderia desistir do médico que escolhi e seguir para outras alternativas, apesar de eu ter pesquisado outras e optado por esta, mas segui com minha decisão. E digo, esse médico foi fundamental. Eu não quis ter doula e eu queria o mínimo de pessoas possível comigo durante o parto. Esse médico foi de uma delicadeza em momentos que eu tinha certeza que não ia conseguir, foi psicólogo, amigo, orientando a mim e ao marido. Eva nasceu de parto normal e eu tive certeza de que tinha feito uma boa escolha em ignorar a pessoa que tentou me fazer mudar de ideia.
Maternidade é uma coisa legal mesmo, mas isso não coloca nenhuma mulher acima ou abaixo de qualquer outro mortal. Primeiro porque gerar alguém, mesmo que biologicamente só XX pode armazenar um feto e permitir que esse punhado de células vire um humaninho lá na frente, é um trabalho em dupla. Não existe um exemplar humano de geração espontânea. Segundo porque eu, outras mulheres e todas as mamíferas geram. Gerar é item básico, acessório de fábrica, anterior a andar de 2 e transar de 4. Por que, então, tanta pressão em torno da maternidade? Ok, mil teorias aqui. Machismo. Ego. Necessidade de ser útil e valorizada. Nenhuma das anteriores. Todas elas. Tostines.
É importante entender que é impossível nos separarmos de nossa cultura e dos nossos limites, ao mesmo tempo que somos capazes de reconhecer como essas forças nos influenciam. Maternidade é sobre se conhecer e entender até onde você pode ir, optar e ter consciência que você será capaz de lidar com suas escolhas e, principalmente, lidar com as consequências delas. Por isso, aprenda a ignorar, porque você e só você terá que suportar qualquer coisa que decorra das suas decisões. Não terceirize sua forma de criar por pressões externas, mesmo que seja de uma outra mãe, afinal, se for para evocar o naturalismo, não tem nada mais natural do que confiar em você.