De homem pra homem
Confesso que me senti meio deslocado naquele consultório bem decorado mas de azulejo triste e frio. A questão é que me vi como aquele irmão mais novo sendo obrigado pelo pai a vigiar a mocinha no encontro com o namorado no parque (alguém ainda faz isso hoje em dia?), sem saber ao certo como me comportar naquele arranjo entre minha mulher, a obstetra e eu.. Eu não estava ali obrigado, muito pelo contrário, fazia questão de estar presente. O ponto é que existia uma cumplicidade bacana entre minha esposa e a doutora, que era também sua ginecologista, com perguntas e respostas rapidamente respondidas, num bate bola que parecia ensaiado, e eu ali semi-avulso, um dois de paus. Tentei umas questões que julguei pertinentes, fingindo saber das coisas, mas me senti como o funcionário novo buscando mostrar serviço na reunião no primeiro dia de trabalho, quando seus colegas mais experientes apenas lhe retornam vez ou outra um olhar condescendente, “valeu amigão pelo esforço, agora fica quietinho e deixa a gente resolver a parada”.
O problema é que eu não era funcionário novo de empresa, nem o irmão segura vela, muito menos estava ali de papo com minha gineco-amiga (urologista-amigo creio não existir). E é claro que não era eu que carregava a criança comigo, que crescia bonita e saudável na barriga ao lado. Mas apesar disso eu era ainda o pai do bebê. Não era avulso! Ou ao menos não deveria ser. Afinal o terceiro milênio já há quase duas décadas deu partida, pra longe se perderam os anos dos homens distantes, que “acompanham” ou “ajudam” (a menção dessas palavras em si já me causava ira), aqueles antigos senhores sentados na sala de espera com as pernas cruzadas e um jornal na mão esperando a mãe sair para conduzir o carro de volta pra casa. Antes de entrar naquela primeira consulta, eu esperava receber da doutora o mesmo olhar direto e gentil que minha patroa recebia, e não uma virada de cabeça ocasional ou um sorriso de canto de boca condescendente. Entrei na sala nos enxergando como dois pais grávidos, simplesmente não me imaginava um acompanhante, segura vela de obstetra.
Pouco depois, logo quando a barriga despontou além daquela protuberância que ainda poderia ser confundida com uma pochete de chope, resolvi ler alguns livros sobre gestação e criação de bebês, somente para ter minha sensação de avulsabilidade (neologismo criado especialmente para esse texto) aumentada. Devorei alguns dos principais (na verdade foram só três) e posso dizer que eles eram bons, úteis, vão trazer mil coisas práticas que vocês não verão nas minhas páginas, mas não tinham sido feitos para mim. Um cara. O que era óbvio quando um deles tratava o eventual leitor de “querida mamãe”, ou o outro que usava todos os artigos no gênero feminino. E eu ainda sabia que a maioria dos livros que li tinham sido feitos na gringa, onde nem mesmo existem os “os” e “as” para rapazes e moças, todos são “the”, mas provavelmente na hora de traduzir para braziland resolveram focar no público alvo: senhoras futuras mamães. Não obstante era certo que eu não era o único xy a resolver me arriscar naquelas páginas, havia sido outro amigo homem que tinha me indicado as obras. Eu não era, enfim, o solo papai buscando conhecimento, mas quando me deparava com o capítulo sobre amamentação, por exemplo, encontrava milhares de informações para a companheira melhor se preparar para a atividade, o que era ótimo, mas nem meia linha sobre o que eu poderia fazer ao mesmo tempo, como ser útil.
Devo esclarecer que meu interesse em nenhum momento enquanto digito essas linhas (balançando no ônibus a caminho do trabalho, deixando a mulher para passar o dia com a bebê), é ajudar a criar super-pais, algo que eu mesmo com certeza não sou (creio que ninguém é). Sou só um cara comum querendo bater um papo sobre essa época em que um bebezinho, menininho ou menininha, chega em nossa vida. Não sei quanto a vocês, mas as vezes sinto falta de sentar com um amigo e gastar um pouco sobre esse dia a dia. De homem pra homem, de pai pra pai. Acho que às mulheres no geral fazem isso com mais frequência, não? Nós, nem tanto. Me recordo um tempo atrás quando estava sozinho num café com minha bebê pendurada a tiracolo no canguru e, apesar do local, trazia comigo uma latinha gelada quando reparei um companheiro nas mesmas condições: também sozinho, com bebê à frente e cerveja ao lado (prometo daqui pra frente não me dizer mais sozinho quando estiver com a bebê, que também é gente). Nos aproximamos pela solidariedade típica dos marsupiais (que depois percebi algo bem comum), somente para trocar sobre estarmos ali, tomando uma, ouvido uma música e tentando cuidar do bebê ao mesmo tempo – a minha dormia tranquilamente com a cabeça tombada para frente, apesar do barulho e da iluminação, já a dele gemia alto parecendo tão assustada quanto o pai pela falta da mãe. Ao final da segunda latinha, e foram só duas mesmo, nos despedimos felizes por termos encontrado um igual (parecido que fosse) para conversar. Ele pediu meu zapzap, reclamando nunca ter com quem falar nos momentos de dúvida e agonia, onde tudo que se busca é alguém que passe pelos mesmos perrengues (percalços, para os cultos), além de uma cerveja. Nunca mais nos falamos.
… E depois que nascer, como é que faz?
Essa foi a pergunta que eu fiz logo ao final do curso de gestante que participamos lá pelo sétimo mês de gravidez. As três horas de palestras naquele sábado de manhã começaram com o discurso de uma nutricionista, moça jovem nos explicando sobre diversos aspectos da alimentação saudável do bebê, dietas e afins, o que ouvi com muito cuidado e atenção, apesar de já ter me esquecido de quase tudo quando a pessoinha veio ao mundo algum tempo depois, ainda mais por ela só ter tomado leite nos primeiros seis meses (bom, creio que a moça falou sobre isso também).
Em seguida veio ao palco uma dentista de crianças, que às vezes me vinha à cabeça quando minha bebê me sorria com a gengivinha vermelha pelada à mostra, e eu me perguntava: devo visitar o consultório daquela moça quando brotar algo nessa bangeleza? O mundo evoluiu, percebo, na minha época meu pai me levava ao dentista quando o dente já doía há algum tempo ou quando já se encontrasse virado para o lado errado da boca (estar preto também era um bom motivo), agora vamos antes do problema já instalado. Concordo, melhor assim, manutenção preventiva é melhor e mais barato que corretiva. Acho que vou me preparar mesmo para marcar visitas regulares na dentista assim que os primeiros pontinhos brancos despontarem na boquinha da nenê, quem sabe evito que ela passe pelos mesmos sofrimentos que tive que enfrentar em plena adolescência, indo para sala de aula, no alto dos meus treze anos, com o aparelho freio-de-burro me encabrestando a nuca. Imagino que exista alguma designação técnica para o dito cujo – e tenho certeza que ele teve papel importante na correção minha arcada – mas o nome que vai ficar na minha memória é aquele que me chamavam sem dó na hora do recreio.
Saí da palestra naquele dia com insegurança de similar gênero e espécie à de quando deixei o hospital meses depois com o bebê no dia do nascimento. Me pergunto se já era assim nos tempos passados, com nossos pais e avós? Ou quem sabe muito antes com os índios na floresta ou os pré-históricos nas cavernas? Será que quando o tupi-bebe-guarani abria o berreiro vindo ao mundo na oca ao lado, o cacique-primeira-viajem já partia sem medo para suas obrigações de pai? Talvez tenhamos perdido nossos instintos em algum lugar entre a revolução industrial e o PlayStation. Teria sido isso?
Tenho a impressão que o que significa ser pai no mundo de hoje está mudando rapidamente e nos vemos meio perdidos tentando saber qual o nosso papel nessa história toda. Era mais fácil antes, com certeza, quando a mãe tinha todo trabalho e o esposo só assessorava na ajuda que ela por ventura precisasse. Sem dúvida era mais fácil. Imagino que ao ouvir o bebê-tupi gritar, seu pai, cacique-primeira-viajem, saia correndo selva a dentro para comprar… digo, caçar comida ou consertar o teto da oca pra tempestade que se advinha, enquanto o rebento se dependurava no peito da mãe se segurando quase que exclusivamente pela boca no bico apontado pra baixo (vi a cena em documentário da TV Cultura). Será que o cérebro do cacique ia dar tilt caso dona índia mandasse ele sentar no sofá (tem sofá na oca?) e trocar o primeira-viagem-mirim, que hoje seria ela a cuidar de abater a paca para o jantar?
Cada um do seu jeito, cada qual com seu instinto (ou falta dele). Eu, particularmente, trocaria tranquilamente a aventura da caçada na floresta pelo conforto quentinho da oca com um bebê chorão no colo (tenho mais facilidade com choro de criança que com grunhido de paca). E nesse mundo moderno, acha-se sem muito esforço mãe que faria a troca inversa sem pestanejar (conheço umas que na caçada dispensariam o arco de flecha e pegariam a presa nos dentes). São tempos novos, de papéis pouco definidos, horizonte meio nebuloso, de dúvidas de quem pode e quem deve o que. Será eu, papai, que devo fazer isso, será a mamãe, seremos os dois ou seremos nenhum? E sem se esquecer do ditado: Cão com dois donos morre de fome. Pois é, não pode valer nesse caso. Bebê com pai e mãe atuantes tem que ter cuidado em dobro… em dobro talvez seja exagero, mas a soma deve resultar em ao menos mais que um (o suficiente para não passar fome). E esse arranjo de juntar um e o outro pra garantir que dá maior ou igual ao suficiente para cuidar do bebê, vai depender da dinâmica do casal. Cada qual com seu instinto (ou falta dele).
O que percebo é que achar esse balanço vai ser tão fácil quanto é dividir as atribuições de qualquer atividade na vida do casal. Se vocês são tranquilos e sensatos na hora de decidir como pagar as contas de casa, cuidar da atividades do lar, preparar viagens, tratar com a família do outro, parabéns, vocês vão tirar isso de letra. Se nem tudo são flores e vocês se estressam para resolver qualquer um desses problemas em potencial, parabéns de novo, vocês acabaram de ganhar mais um motivo para brigar.