Infame

A Costura de Uma Ruptura

"Por sorte e por bom senso de minha mãe, soube ainda pequena da minha adoção. Não que ela tenha me contado por achar que isso estaria no meu psiquismo ou porque estava morrendo de vontade de contar, foi mais uma questão de que “um dia alguém poderia me contar”. Mesmo assim, contou como pode, sem muitos detalhes, explicando o que sabia e o que achava que deveria ser contado. Ainda tivemos mais algumas conversas (difíceis) ao longo dos anos e percebi o esforço com o qual minha mãe se debatia pra entrar em contato com o tema. Se pra minha mãe é difícil entrar em contato com essa questão, pro meu pai, impossível, nunca citou o assunto. Igualmente para o restante da família".

Por Verônica Almeida |  30 de agosto de 2018

Antes de iniciar este texto, cabe dizer que todos os filhos são adotados. Mesmo os filhos biológicos precisam ser adotados pelos pais, uma vez que o vínculo não vem sólido, pronto, construído; ele se constrói através do desejo investido no bebê; se constrói, por fim, através da adoção por parte de seus pais.

Dito isso, a questão da adoção – concreta – ainda é vista e sentida como um grande tabu. Primeiro pelos pais que, tantas vezes despreparados para lidar com o assunto dentro deles mesmos, têm o desejo de não falar sobre o tema entre eles e com seus filhos, criando novas narrativas para si mesmos, como se assim, a história da adoção pudesse desaparecer. Não desaparece. Vai e vem. Segue com os pais, familiares e, essencialmente, com o sujeito adotado que, por vezes, tenta reconstruir sua história através das lacunas dos não ditos familiares que se instauraram dentro de si.

Este tabu é alimentado por fantasias em que os pais, tantas vezes, se questionam sobre a curiosidade dos filhos em saber sobre sua própria origem (algo natural e humano, todos nós temos curiosidade de saber de onde viemos), o receio de que procurem pelos pais biológicos e esqueçam deles ou talvez de que o filho não os ame mais em prol de um suposto encontro com esses pais biológicos.

Nunca quis (re)encontrar meus pais biológicos, mas, dentro de mim, esse assunto sempre me rondou – consciente ou inconscientemente.

O tabu se faz presente no adotivo em meio ao silêncio que se estabelece sobre o assunto, os tais não ditos familiares que ficam no ar. Como se ele mesmo não pudesse ou não devesse entrar em contato com a sua própria história e origem.

Importante dizer também que, mesmo aquele que não sabe de sua adoção, sabe, inconscientemente. Em psicanálise, diz-se que o psiquismo se constitui através (também e principalmente) das experiências primárias do indivíduo com o outro, ou seja, das primeiras experiências de vida, o que nos dá a entender que embora não nos lembremos do que foi vivido com dias de vida e mesmo nos primeiros anos, é como se algo destas experiências ficasse registrado/marcado dentro de cada um de nós. De alguma forma, portanto, o sujeito sente que tem algo “errado” ou “estranho” em sua história, algo que não se encaixa, algo que se rompe, seja concretamente como a cronologia de fatos ou a ausência de fotos, seja psiquicamente com uma ruptura que se dá em suas primeiras experiências, embora todo o indivíduo – adotado ou não – tenha as suas marcas, os casos de adoção mostram que as relações mais primitivas acabam se rompendo e a maneira como isso reflete no sujeito é bastante subjetiva.

Às vezes, essa ruptura segue presente no indivíduo repetindo-se em situações diversas de sua vida, sem que uma coisa seja conectada à outra. Durante muito tempo, no meu caso, essa ruptura esteve presente na forma como me relacionava com os meus parceiros, por exemplo. Tudo acabava por meio de um término doído e inexplicável, sem representação, um buraco que se repetia de novo e de novo numa tentativa difícil de elaboração. Parecia até que de alguma forma aquela dor me era conhecida.

Por sorte e por bom senso de minha mãe, soube ainda pequena da minha adoção. Não que ela tenha me contado por achar que isso estaria no meu psiquismo ou porque estava morrendo de vontade de contar, foi mais uma questão de que “um dia alguém poderia me contar”. Mesmo assim, contou como pode, sem muitos detalhes, explicando o que sabia e o que achava que deveria ser contado. Ainda tivemos mais algumas conversas (difíceis) ao longo dos anos e percebi o esforço com o qual minha mãe se debatia pra entrar em contato com o tema. Se pra minha mãe é difícil entrar em contato com essa questão, pro meu pai, impossível, nunca citou o assunto. Igualmente para o restante da família.

Mesmo sabendo da minha adoção através de uma história mais ou menos contada, já adulta, passei por fases em que a curiosidade sobre minha própria história – nunca antes explícita por se tratar de um “segredo familiar” – me invadia com grande força até ter coragem de perguntar para alguns familiares próximos sobre o que sabiam. Queria outras versões, além da que me era apresentada. De toda forma, o assunto foi recebido com grandes interrogações por quem foi questionado.

Neste contexto, me intriga o fato de que mesmo se instaurando informalmente o voto de silêncio em minha família a respeito da minha adoção e, consequentemente, da minha história, as referências ao tema aparecem milhões de vezes das mais diversas formas entre os não ditos familiares. Palavras, gestos e emoções escapam num encadeamento de ideias de difícil compreensão.

Minha avó em seus últimos anos de vida deixava escapar uma frase em contexto obscuro pra mim, ela dizia “sua mãe lutou muito por você”, disse isso mais de uma vez enquanto falávamos sobre amenidades, sem que eu entendesse em que contexto aquela frase se encaixava, parecia querer falar sobre o assunto, sem poder. Da mesma forma, anos antes, uma tia cochichou pra minha mãe sobre a novela das nove, que abordava o assunto da personagem que ia atrás dos pais biológicos, pedindo pra que minha mãe “ficasse de olho” nas minhas supostas reações, ao que minha mãe não pareceu dar importância alguma. Claro, ela sabia que a preocupação não tinha o menor cabimento e até achei graça por alguns motivos: O primeiro é que todo mundo sabe que não assisto a novelas e mesmo que assistisse, dificilmente iria atrás dos meus pais biológicos, baseada e inspirada numa personagem; o segundo é que o cochicho, curiosamente, chegou aos meus ouvidos em um cômodo distante da casa. Ela também parecia querer falar sobre o assunto “proibido”. E, por último, dia desses, estava com minha outra avó almoçando, ao que ela fala sobre uma criança que foi dada a um casal e se emociona. Secando as lágrimas, disserta sobre o ato de amor de uma mãe ao dar um filho na impossibilidade de criá-lo. Fico intrigada com aquelas lágrimas fora de hora e de contexto. Parece que o “segredo” tão bem guardado escapa em contextos atípicos, na tentativa de dar bordas à angústia que cada um abriga dentro de si.

Em minha vida pessoal e em casos que acompanhei no consultório, senti e presenciei dúvidas e fantasias que se fazem presentes no sujeito, na maioria das vezes, não de forma clara – ou consciente, sobre os motivos pelos quais os pais o abandonaram (um abandono nem sempre é um abandono!), sobre os fragmentos de sua história, a sensação de estranheza dentro da própria casa ou ainda a sensação de estar no lugar errado. Essas não são sensações exclusivas dos casos de adoção, alguns filhos biológicos também podem sentir sensações similares pelas mais diversas razões.

De toda forma, essa ruptura tida como rejeição precisa ser olhada, cuidada e trabalhada pelo sujeito que a sofreu, e, se possível, junto aos seus pais adotivos numa tentativa de ressignificação, ou seja, reescrever simbolicamente sua própria história numa narrativa capaz de dar novos contornos e significados para si mesmo, uma espécie de costura a partir de novas referências.

Não é nada fácil, mas bastante possível e, tantas vezes, contribui para relações de maior qualidade.

Dito tudo isso, sei que ficarão ainda os muitos não ditos, pois a adoção é um tema complexo, cheio de tabus difíceis de serem lidados pelas famílias e suas crianças, sem que haja regras ou cartilhas prontas. Como todas as famílias, a minha lidou e lida como pode, objetivando me proteger, me cuidar e transmitir todo o amor que sigo recebendo, dentro de suas possibilidades. Coube a mim a tarefa de reescrever (e no meu caso, não sem a ajuda de um divã) – e seguir escrevendo uma narrativa que fizesse sentido, costurando simbolicamente lacunas, dentro também de minhas próprias possibilidades.

 

Este texto foi escrito utilizando como base leituras psicanalíticas: Maria Salete Abrão em seu livro “Construindo vínculos entre pais e filhos adotivos”; alguns textos mais genéricos que tem como base a relação mãe-bebê com autores como Winnicott, Freud e Ferenczi e artigos acadêmicos lidos ao longo de minha trajetória psicanalítica.

Verônica Almeida

Verônica Almeida

Verônica não se parece fisicamente com ninguém de sua família, mas a disciplina financeira vem de seu pai; o gosto pelos livros, de sua mãe. Tem uma irmã e influências, principalmente, da família paterna com quem ainda convive intensamente e gosta quando dizem que o seu jeito é parecido com o avô, a quem era muito ligada e de quem sente saudades.