Infame

Todas as Possibilidades Existiam

"Na cultura japonesa existe um termo um pouco estranho para o entendimento dos ocidentais, a palavra MA, que traz o sentido de intervalo, tempo, espaço, distância entre duas partes. Essencial nas artes nipônicas, está presente no desenho dos jardins, com calculados espaços sem vegetação, aos haicais com suas frases pouco explicativas. Acabei conhecendo o termo num curso de butoh - a dança japonesa de movimentos sutis mas carregados de peso. Já no início, o primeiro aviso, "esvaziem-se para poder absorver o todo, lembrem-se da figura do bambu que é firme mas oco".

Por Bruno Henrique M.S. |  28 de julho de 2018

O inefável estava em uma sala embaixo do Viaduto do Chá. Já havia alguns dias eu recebera o convite para escrever sobre esse antigo sujeito que espia as terras humanas. Diante do entusiasmo inicial (e talvez deleite), agora começava a ver minha excitação se resvalar nas dúvidas frias de páginas em branco. O vazio me aguardava, esse era meu tema.  Mas ainda não sabia como deveria enfrentá-lo.

A psicanálise e seus divãs que derrubam catedrais e percorrem as lacunas da alma apareceu como uma possibilidade. Seria Lacan? O seu complexo trabalho de investigar os significados, desconstrui-los e reconstrui-los poderia ser um bom guia para enfrentar aquele sujeito que padece de uma essência primordial e única: não lhe pertencem as palavras.

Mas o vazio talvez seja sorrateiro demais para os nossos labirintos de significados. Ainda que tenhamos que chamá-lo de algo, ele não pode ser nem sujeito, nem predicado. E diante desse trabalho de Sísifo que me foi oferecido, logo percebi que Lacan possuía muitas palavras –  em profusão e demasia – e comecei então a vê-lo como um obstáculo, e não mais um caminho.

Estava marcado para as dezenove horas de um sábado – seco e morno de outono. Não imaginava que me encontraria com ele, o vazio. Desci a escadaria do Viaduto do Chá e empurrei o portão de ferro oxidado. Era um prédio simples com cartazes colados na parede. O porteiro me guiou até o amplo corredor que dava para a sala do encontro. Um grupo de pessoas estava amontoado no interior.  As cadeiras da plateia estavam isoladas por fitas de NÃO ULTRAPASSE, restando às pessoas um pequeno espaço para ficar – de pé – entre a entrada e o palco.

Dezenove e dez, dezenove e quinze. Espera. Nada acontece. Todos permanecem de pé, alguns olhares de soslaio. O convite dizia espetáculo de dança. Mas onde está o bailarino? Nenhum movimento. Dezenove e dezessete. Um sujeito ao meu lado dá alguns passos – ele não era um espectador? – em seguida, retira alguns papéis do bolso, dirige-se até a parede e cola: 1, 2, 3…vários papéis. Em cada papel um texto diferente. A audiência se anima e começa a segui-lo, os textos seriam manual de instrução para a performance? SINTA A VOZ DO VERMELHO, AGUARDE OS TRAÇOS DO AMARELO. Surgiria dali algum movimento de dança? Os textos ajudam pouco, ou simplesmente não explicam nada. O bailarino (ou moço dos papéis) ensaia fazer um movimento, todos param. O movimento não acontece e ele volta a colar os papéis. Eu leio o quinto papel, e decido sentar-me no chão e apenas observar. Observar aquele ambiente de paredes pretas sendo percorrido por uma plateia com movimentos perdidos, hesitantes, duvidosos. Uma cena sem instruções. Vazio.

Na cultura japonesa existe um termo um pouco estranho para o entendimento dos ocidentais, a palavra MA, que traz o sentido de intervalo, tempo, espaço, distância entre duas partes. Essencial nas artes nipônicas, está presente no desenho dos jardins, com calculados espaços sem vegetação, aos haicais com suas frases pouco explicativas. Acabei conhecendo o termo num curso de butoh – a dança japonesa de movimentos sutis mas carregados de peso. Já no início, o primeiro aviso, “esvaziem-se para poder absorver o todo, lembrem-se da figura do bambu que é firme mas oco”. O professor japonês naturalmente tem uma fala marcada por pausas. Como a pintura japonesa se especializou em criar espaços entre os elementos de um quadro, concedendo ao observador o direito da interpretação e criação, as pausas do professor suscitava tempo para reflexão. O MA não é um lugar que nada acontece – ao contrário – é onde tudo pode acontecer.

Ao final da apresentação de dança sem dança, o bailarino abre um sorriso e diz “vocês querem bolo?”. Todos se acomodam no chão, e entre uma fatia de bolo e um copo de suco, agora não mais vejo o artista, vejo o humano dividindo o alimento. E humanos diante de humanos sentem-se menos acuados do que diante de artistas. As perguntas não se intimidam, “afinal, o que representavam os papéis colocados na parede, o que você esperava que a audiência fizesse, qual o significado disso tudo?”. E da mesma forma franca e simples com que trouxe o bolo, o bailarino apenas confessa: não havia nenhum significado sendo representado; nenhuma forma pré-concebida, a intenção era apenas experimentar sem saber aonde chegar.

A vida contemporânea se especializa – num ritmo perigoso – em técnicas de cartografia: mapas de necessidades, mapas de desejos, mapas de humanos. O produto é ofertado exatamente de acordo com meu gosto; a rede social limita meu contato a um grupo de iguais e a informação chega diariamente na tela do meu celular filtrada e embalada de acordo com minhas preferências. Percebemos o momento em que as linhas desses mapas deixam de ser apenas guias, para consolidarem-se como cercas?

O MA não é o vazio. E também não é o todo – mas um espaço de intermédio que pode ser ao mesmo tempo as duas coisas. Esse conceito que quebra o pensamento dualista ocidental me faz rever um pouco minha ansiedade de encontrar o vazio. Talvez o contato com um vazio puro, indivisível e inominável esteja distante demais da nossa realidade. Já a experiência com o MA – um vazio que pode conter tudo – pode ser algo possível e certamente essencial. Penso nesse conceito, e no desejo de vivenciar mais vezes essa experiência – momentos de pausa que podem se revelar como potências criadoras. Mas o desafio não é fácil diante do movimento diário do capitalismo de preencher todos nossos espaços, tempos e significados.

Quando recebi o convite para escrever sobre o vazio, confesso que minha excitação quis logo procurar um caminho complexo de conceitos profundos. Afinal, se o vazio é antes uma ideia do que um fato, não haveria melhor saída. Mas, por esses caprichos do destino, o vazio dos conceitos estava cada dia mais distante. Foi no vazio da experiência, do experimentar, que esbarrei com esse sujeito obtuso e olhei a sua face. O vazio entrou pela porta quando eu deixei para fora meus papéis, minha expectativa, meus mapas e meus conceitos. Ele não possuía propósito nem prometia oferecer algo. Eu havia saído de casa para cumprir meu papel de espectador de um espetáculo – mas esse papel me foi retirado assim que entrei na sala. Tornei-me, enfim, algo de entre: plateia e obra. E nesse ponto, todas as possibilidades existiam.

 

 

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S. trabalha com comunicação, mas sente-se vivo nos cômodos da arte. Tem dificuldade para preencher mini currículos. Prefere inventá-los.