Ele é um cara vazio. Ando me sentindo meio vazio. O bar é terrível, estava vazio. A barriga vazia deste povo miserável. Cabeça vazia: oficina do diabo.
Vazio: que não contém nada. Desocupado. Desguarnecido. Privado de algo. Superficial, frívolo, fútil. Destituído de espírito ou inteligência. Carente. Desprovido de significado ou valor.
No esforço para nos comunicar, somos prisioneiros das palavras e dos significados que adquirem ao longo dos tempos. Durante esse processo cultural de sedimentação semântica, as palavras muitas vezes passam a significar algo totalmente alheio ao sentido original presente nos grunhidos de outrora que um dia lhes trouxeram à luz. E exatamente por serem apenas palavras, seres espirituais e incorpóreos, sequer têm o direito de se defender contra seu mau uso; vão parar onde nunca pretenderam estar, abrigando significados com os quais nunca sonharam.
Nessa luta de sentidos que se ganham e se perdem, fomos ensinados que o vazio é algo ruim. Necessariamente ruim.
De fato, ninguém aqui pretende negar seu potencial destrutivo. Deprimidos, abandonados, descrentes, indecisos, dentre outros indivíduos de alguma forma esvaziados, não poderão negá-lo jamais.
Mas isso é mesmo tudo? Será que a ausência e os seus ventos cheios de nada também não podem trazer coisas boas? Será que não existem diversas espécies de esvaziamento, algumas delas dotadas de poderes construtivos?
Acredito que o vazio, para o escândalo dos seus críticos, contém muitas respostas. É maldito e também é sagrado. Dele surge a vida, segundo boa parte das fés dignas de serem acreditadas nesse mundo. Dele também nasce a força criacional da arte, que, como já disse Camus, estaria sempre em uma espécie de conflito com Deus, cada um ocupado em erguer um novo mundo conforme seu próprio engenho. No silêncio, a modalidade sonora do vazio, está a colisão consigo mesmo, a observação atenta, o escutar no lugar do falar, o olhar voltado ao interior. O vazio abre caminho para novas ocupações e aponta direções. Renova culturas, revoluciona reinos, refaz políticas, desenvolve tecnologias. O vazio é o vale depois do qual descobre-se a cura. É a paz que só existe com os olhos fechados. É solitude. É encontro. É a maior matéria prima que forma o corpo das possibilidades.
Não podemos ignorar o poder do vazio, esse fantasma que vai preenchendo com nada os buracos deixados em nossas vidas, dando unidade aos nossos dias. Sem vazio não se faz mundo. Sem suas pilastras existenciais, o mundo não passa de um ajuntamento de rochas e barro e aço e concreto.
Este filme foi pensado para discutir isso tudo. E para isso convidamos pessoas fantásticas e especialmente interessadas pelos encantos (ou pelas ameaças) do vazio: Andréa Del Fuego (escritora), Ed René Kivitz (pastor), Eduardo Rombauer (facilitador e ativista político), João Daniel Rassi (criminalista), Juliano Garcia Pessanha (escritor e filósofo), Mag Magrela (grafiteira), Monique Evelle (jornalista e empresária), Nana Queiroz (jornalista e escritora) e Ryozan (monge budista). Nossa intenção é olhar para a ausência como um espelho, algo tão esvaziado que afasta distrações e nos obriga a sentir, perceber e refletir.
No conto “A Função da Arte 1”, Eduardo Galeano conta a história de um garoto que se vê fascinado pelo mar. “Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava à frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!”.
Aquele conjunto de ondas era tão rico e complexo que o menino sente não poder agir sozinho e pede ajuda a seu pai: me ajuda a olhar. Para Galeano, essa é a função da arte. Para mim, essa é também a função do vazio: ajudar a olhar.
Vazio é início. Constrói o futuro. É oficina de todos: de Deus e do diabo; de você e de mim.
Matheus Machado