Quando recebi o convite para escrever sobre aceitação ou autoaceitação, pensei em outro texto, não neste. A princípio, queria relacionar as ideias de Foucault, destacando as estruturas de poder, com a temática, argumentando contra a possibilidade da autoaceitação uma vez que os mecanismos de controle, sobretudo nos corpos, impõem qualidades semelhantes a destinos diferentes, amplificando as desigualdades e reafirmando que este processo só se realiza quando o indivíduo é aceito por tais mecanismos. Dessa forma, quando inserida no contexto, paradoxalmente, fundamentada em um corpo social, a autoaceitação torna-se consentimento, permissão do outro.
Pensei também em associar a ideia de autoaceitação com responsabilidade e liberdade nas ações, o que conferiria um dialogismo com o campo da ética. Porém, para qualquer dessas abordagens, falta-me o conhecimento necessário para o desenvolvimento das ideias. Lembrei do sonho de cursar filosofia antes mesmo de saber o que eu queria fazer. Recordei também do primeiro trago que dei num cigarro, da sensação horrível na boca, do enjoo, e mesmo assim eu insisti, largando para trás a garota esportista, cujo corpo pertencia mais ao mar. Busco nos livros, na filosofia, no pouco que entendo de psicanálise, um conforto para esta incompletude originária dos sonhos frustrados, tentando parar de fumar mais uma vez. Sinto-me, assim, num movimento descontínuo, abarrotada de vontade para ser/ter novamente o que perdi. A cronologia é construção, mas o movimento é a vida passando.
Por que eu não fiz filosofia mesmo?
Por que comecei a fumar?
Diante do espelho, percebo-me outra quando passo o batom vermelho e, atravessada pela imagem que vejo, descubro que eu fui construída por um rosto não meu. Mas antes do batom, a base. Preciso encobrir as imperfeições, pensava antes de ter descoberto pela imagem que o meu eu não era meu de verdade.
Aceito a falta de resposta e de explicação que a mim não consigo ainda dar.
Aceito que o meu conhecimento seja pequeno diante de tantos outros.
Aceito estar no movimento.
Aceito o outro em mim.
Ilusão acharmos que a autoaceitação é sistematizada e desenvolvida individualmente sem a presença de um outro. Ao contrário, a aceitação (retiro o auto por não acreditar em “autos”, sejam eles quais forem) processa-se na alteridade, ou seja, é através do olhar do outro que nos fazemos e nos refazemos diante do movimento da vida.
Eu não aceito o movimento, ele sim. Dessa forma, eu me acalmo na sua presença e, se eu ainda não aceito a instabilidade desse movimento, eu crio com ele bases para não enlouquecer ao perceber o fluxo descontinuo. É isso a vida, meu bem?
De frente ao outro, nós nos enxergamos e sentimos o que, de fato, nos é pertencente ou não. Ninguém é alguém sozinho. Não se aceita aquele que tem certezas, aquele que se diz self made man, aquele que, imbuído de medo, afirma ser pleno. Aceitar-se incompleto é uma condição prévia indispensável para se sentir mais completo, porque somente dessa forma somos capazes de nos libertar de nossas fragilidades, muitas vezes encobertas pelo orgulho, e estabelecer relações de afetos verdadeiras.
Eu aceito-me incompleta.
Eu não aceito a morte, ele sim. Sua mãe morreu de repente. Tombou de lado. Não fumava, não bebia, não gastava. Nada em excesso, nadinha. Tudo controlado, sistematizado, e as parcelas eram em suaves prestações. Tombou de lado, morreu assim. Infarto do miocárdio fulminante, não deu tempo de nada. Tombou de lado. É a vida, ele diz. Resignado, ele agradece a vida que me trouxe a ele e nossos filhos. É isso a vida, meu bem? Com ele, eu tento resignar-me diante da morte e ser agradecida.
Eu não aceito a resignação.
Eu não aceito vitimismo, mas acredito em vítimas.
Eu não sou vítima, pois meus erros foram minhas escolhas.
Eu não fiz filosofia. Eu fumo, e me arrependo.
Eu aceito os erros das minhas escolhas.
Eu aceito quando assumo. Eu aceito.
Aceitando-me, escrevo com a minha força e com a do outro para, em comunhão, ser quem eu sou.
Assino: Deborah, com h no final.