Desde criança minhas memórias são sequestradas por trechos de músicas que não entendo. Palavras que marcam, e ao mesmo tempo são mistérios que não revelam facilmente a intenção de seu autor. “Sampa”, de Caetano, é uma dessas canções. “É que Narciso acha feio o que não é espelho” é um verso que já me intrigava antes mesmo de saber quem era o tal Narciso e as razões de seu apreço pelos espelhos. Não sei até onde vão os conhecimentos psicanalíticos de Caetano, mas outro verso que só veio me tocar profundamente anos mais tarde é “e à mente apavora o que ainda não é mesmo velho”. Explico.
O mito de Narciso faz parte da mitologia grega. Numa de suas versões mais comuns, ele era um caçador muito conhecido por sua beleza e orgulho. Despertava o amor de homens, mulheres e inclusive ninfas, mas, como era alguém muito arrogante e insensível, deixava um rastro de sofrimento por onde passava. Tal desprezo rendeu pedidos de vingança aos deuses, e foi aí que Némesis o condenou a se apaixonar pela imagem de si mesmo. Narciso, ao ver seu reflexo na água, não conseguiu mais parar de se admirar. Encantado por sua própria beleza, definhou até a morte.
Etimologicamente, Narciso (Nárkissos) possui o elemento nárke, cujo significado se aproxima de “dormir, entorpecer, amortecer, dessensibilizar”. Nárke também está presente em palavras como narcose, narcótico ou narcolepsia, todas relacionadas a algum tipo de alteração na consciência ou percepção da realidade. Provavelmente não é coincidência que Narciso era preso à sua vaidade, insensível às demandas daqueles à sua volta, tão mergulhado dentro de si a ponto disso lhe custar a vida. Essa história inspirou a formulação do conceito de “narcisismo” por Freud, para falar do investimento que fazemos em nós mesmos e relacionar diferentes fenômenos de nossa vida psíquica.
“Narciso acha feio o que não é espelho”, e num dos momentos mais primitivos de nosso desenvolvimento sentimos o diferente como ameaça. Aprendemos a nos separar dos outros e a termos uma imagem do que somos justamente quando o outro falha, quando não responde às nossas demandas. Dessa forma, o reconhecimento da diferença ocorre junto com a frustração, e é uma afronta à nossa identidade porque nos mostra outros meios de ser, nos faz questionar sobre nós mesmos, e por isso “à mente apavora o que ainda não é mesmo velho” (Caetano sendo genial). Aceitar a alteridade, legitimá-la, requer uma reorganização de nosso psiquismo para que o diferente faça parte de nós. É um exercício complexo, mas que fica mais fácil quanto mais vasto é nosso repertório, quanto mais “modos de ser” temos acesso, quanto mais convivemos com a diferença. Se é uma questão de exposição ao outro, a globalização potencializou o multiculturalismo mundo afora e as novas mídias nos trouxeram informações diversas. Tanta heterogeneidade melhorou nossas relações com o diferente, uma análise superficial poderia afirmar. Infelizmente, não foi bem assim.
A estrutura de nossas mídias afeta a sociedade. Se antes tínhamos uma comunicação de massa, transmitida num grande pacote para todas as pessoas por rádio ou televisão, na década de 80 tivemos a ascensão de uma comunicação segmentada. Canais via cabo, filmes em VHS e os próprios walkmans nos ajudavam a consumir nosso conteúdo favorito, quando quiséssemos. Por um lado, é bem vantajoso ter informações sob demanda, mas até que ponto isso é saudável? A popularização da internet nos anos 90 carregava consigo a promessa de democratização de conteúdo. A chamada Web 2.0 nos trouxe blogs, avaliações de produtos, sites em que você compartilhava conteúdos autorais (como o YouTube) e, enfim, as redes sociais. Tudo parecia revolucionário, pois não seriam mais os grandes portais, a grande mídia, os detentores das informações. Ela também passou a ser produzida por someone like me, o que inclusive satisfazia o desejo por autenticidade, depois da moda oitentista de produtos feitos em larga escala, plastificados, imitações, artificiais, etc. O apelo hoje é pelo artesanal, verdadeiro e orgânico, mas isso é assunto para outra hora.
O problema é que logo essa diversidade de conteúdo foi usurpada por algoritmos. Sob a desculpa de haver um excesso caótico de informações disponíveis, empresas como a Google e o Facebook se dispuseram, em toda sua benevolência, a organizar e decidir aquilo que seria interessante para termos acesso, poupando nosso trabalho de vasculhar todo o lixo informacional. Essa seleção desenvolveu um fenômeno chamado “Câmaras de Eco”, ou “Filtro Bolha” (segundo Eli Pariser). Não posso deixar de apontar que, na mitologia, Eco foi uma das ninfas que amaram Narciso incondicionalmente. Condenada a poder apenas repetir as últimas palavras de seus interlocutores, ela não conseguiu expressar seu afeto por ele, foi rejeitada, e em algumas versões da história era dona do lago em que seu amado se encantou pelo próprio reflexo. Narcisismo, eco, sigamos no raciocínio.
O Filtro Bolha funciona da seguinte forma: com base em seus cliques, nos cookies que ficam em seu navegador, suas curtidas, tipo de dispositivo, local, interações com amigos, e várias outras informações, os algoritmos mostram a você apenas as coisas que teoricamente lhe são relevantes. E tudo isso sem que você nem tome conhecimento do processo, sem saber o que ficou de fora. Os resultados de uma busca minha no Google são completamente diferentes de qualquer outra pessoa, mesmo que digitemos os mesmos termos, ao mesmo tempo. Acontece da mesma forma com o feed do Facebook, Instagram ou YouTube.
“Um esquilo morrendo em frente à sua casa pode ser mais relevante para seus interesses agora que pessoas morrendo na África”, disse Zuckerberg ao defender o uso de algoritmos na linha do tempo. Talvez isso seja verdade para alguns usuários, mas definitivamente não é para todos. E como isso é decidido? Pela lógica de “se você gosta daquilo, também vai gostar disso”, “se você é amigo de fulano que gosta daquilo, você também gosta”, “se tal coisa tem muitas curtidas entre suas conexões, então você curtirá também”, “quanto menos você interage com fulano, menos coisas dele você verá”, e por aí vai. Se a ideia é manter as pessoas por cada vez mais tempo no Facebook, a estratégia é oferecer conteúdos palatáveis e que provavelmente cairão na graça de quem os recebe. Mas se os likes são a base da coleta de dados, há algo de tendencioso. O dedinho para cima é uma resposta positiva. É muito mais fácil curtir a foto de um gatinho do que uma cena de violência. Nunca soube muito bem como reagir a quem posta que está no hospital ou de luto. Atualmente temos outras reações disponíveis, mas não parece ter feito muita diferença. E nisso, vamos nos fechando em nossas “Síndromes de Poliana”, acessando e disseminando inutilidades, memes e outros conteúdos de fácil consumo, e deixando de lado problemas e reflexões que trariam alguma mudança para o mundo.
Pariser descreve de forma simples a formula dessa estratégia de negócios tão eficaz: “quanto mais individualmente relevantes as informações oferecidas são, mais anúncios eles podem vender, e mais provável será que você compre o produto que estão oferecendo”. Já seria bastante ruim se toda essa personalização fosse apenas voltada para anúncios, mas ela também molda nosso acesso às notícias, ao que ocorre no mundo, nossa percepção da realidade. Alguém pode dizer que é só uma questão de buscar outras fontes, entrar em contato com outras partes, mas não é tão simples assim. Recentemente a Mozilla publicou uma pesquisa apontando que 55% dos brasileiros acreditam que Facebook e internet sejam a mesma coisa, mostrando o quanto de conhecimento digital temos. E o maior risco do Filtro Bolha é que raramente sabemos o que não sabemos. Psicologicamente, esse reforço da própria identidade, dos posicionamentos, discursos e ideias leva a apenas uma coisa: intolerância.
No desenvolvimento de sua teoria, Freud elabora o que ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”, uma espécie de hostilidade e estranheza presente nos vínculos humanos que se apega aos detalhes divergentes apesar de toda a semelhança com o todo. Seria uma forma de se reafirmar como indivíduo e não se fundir com os outros, mantendo um distanciamento moderado e garantindo uma unidade identitária. Contudo, há momentos em que essa intolerância é suspensa, as diferenças são ignoradas, e os indivíduos se vêm como homogêneos, irmãos. É o caso das massas, em que as pessoas se uniformizam, seja num exército, instituição, culto ou torcida organizada, e o narcisismo das pequenas diferenças que garantia a singularidade do indivíduo passa a garantir a coesão e unidade da massa.
“Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade”, nos diz Freud. E é justamente esse o problema da formação de massas. Dentro de gangues, torcidas ou facções as pessoas se identificam com um traço, e recusam as outras com base em apenas um elemento. Torcedores por vezes matam adversários por conta de seu time, sem pararem para pensar se o outro era um membro produtivo da sociedade, colega de profissão, bom pai, arrimo de família ou qualquer outra coisa. Resta apenas o palmeirense, santista, corintiano ou cruzeirense. Foi assim com os judeus no holocausto, e é assim com as minorias de hoje, negros, trans, refugiados, etc.
O narcisismo das pequenas diferenças enquanto fenômeno grupal é perigoso, é a miséria psicológica de massa, em que a heterogeneidade dos sujeitos desaparece e a sensibilidade fica estereotipada. Não se vê nada além dos traços definidores e a alteridade vira uma caricatura. Japoneses, coreanos, chineses são todos “japa” aqui em SP; mexicanos, porto-riquenhos, dominicanos, cubanos são “chicanos” aos olhos norte-americanos, como se não houvesse diferenças dentro de outras etnias.
As redes sociais que massificam as pessoas potencializam o narcisismo das pequenas diferenças, reforçam egos com informações sempre redundantes, que confirmam ideias e tornam os sujeitos cada vez confiantes para defender seus pontos de vista. Presos em nossas bolhas de espelhos, nossas opiniões são como mantras que se repetem, ecoam nos discursos vizinhos e acreditamos que estamos certos, afinal, todo mundo concorda. E quanto mais nos agregamos em nossos grupos polarizados mais nos distanciamos dos outros que, pela seleção dos algoritmos, nem chegamos a conhecer direito. Ficamos com a caricatura daqueles estranhos, despersonalizados, coisificados, matáveis, cada um deles sendo um espantalho no qual projetamos aquilo que foi rejeitado por nossos “semelhantes”. Se a aceitação da diferença requer, além da exposição a ela, uma mudança em nós mesmos, o prognóstico de nossa sociedade não é dos melhores. A paisagem moderna é uma vasta monocultura de narcisos.