Infame

Terminal 10mg

Nessa militância poética, deparo-me sempre com a generosidade do Universo, pois há o olhar atento às sincronicidades. E foi assim, uma vez mais, que descobri o MEXA. O Coletivo, fundado em 2015, não se define como artístico, embora utilize da escrita e da performance para transformar as vivências de seus integrantes. Pessoas em situação de rua e vulnerabilidade. Através de encontros, escutas, projetos. Dar voz aos seres encharcados de paixão e incompletude. Indignados com a melancolia existencial, como os poetas.

Por Mariana Portela |  09 de maio de 2018

“Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada.

O que te direi? Te direi os instantes. Exorbito-me e só então é que existo e de um modo febril. Que febre: conseguirei um dia parar de viver? Ai de mim, que tanto morro. Sigo o tortuoso caminho das raízes rebentando a terra, tenho por dom a paixão, na queimada de tronco seco contorço-me às labaredas. À duração de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa. Sou um ser concomitante: reúno em mim o tempo passado, o presente e o futuro, o tempo que lateja no tique-taque dos relógios.

Para me interpretar e formular-me preciso de novos sinais e articulações novas em formas que se localizem aquém e além de minha história humana. Transfiguro a realidade e então outra realidade, sonhadora e sonâmbula, me cria. E eu inteira rolo e à medida que rolo no chão vou me acrescentando em folhas, eu, obra anônima de uma realidade anônima só justificável enquanto dura a minha vida. E depois? Depois tudo o que vivi será de um pobre supérfluo.

Mas por enquanto estou no meio do que grita e pulula. E é sutil como a realidade mais intangível. Por enquanto o tempo é quanto dura um pensamento.” Clarice Lispector in Água Viva.

O lirismo sempre  me foi a forma de resistir ao mundo. Insuportável. Doido. Doído. Quando a vida se encarrega de enlouquecer as trajetórias possíveis, há sempre um verso que se gruda ao meu sangue. Página amarelecida de um livro amado. Urgência em transbordar a dor em palavra.

A poesia faz parte do psiquismo humano, antecipando a possibilidade do novo. Nenhuma imagem poética pode ser compreendida como uma metáfora, uma representação de algo, mas como um olhar novo, azul que denuncia o horizonte, após a tempestade, para quem lê.

A partir do contato com a imagem poética é possível transpor-se, reviver acontecimentos, reivindicar fatos sob um novo ponto de vista. A íris de criança que a poesia permite é um fenômeno que merece ser estudado. O leitor apaixonado se sente muitas vezes irritado com o autor do poema, reclamando a sua autoria. É… o fenômeno poético permite ao ser humano sensível confundir-se com o autor da obra. Como é possível que isso tenha sido escrito por outra pessoa senão eu? Como alguém já viveu exatamente da mesma forma que eu? Que conexão pode existir entre mim e este outro ser, de outra época, de outra cultura? E, ao caminhar perplexo, o leitor atento entenderá o valor de um poema: o resgate do óbvio em si mesmo.

Alguns leitores podem ir além, sentindo subitamente uma estranha vontade de escrever seus próprios poemas, de revisitar os lugares onde suas almas estiveram conectadas, embora não percebessem, até aquele instante. Quando um leitor realmente se transforma ao encontrar-se com a poesia, ele naturalmente torna-se poeta.

O psicólogo João Augusto Pompéia descreve com brilhantismo essa sensação. Em seu livro, Na presença do Sentido, ele nos clarifica o que acontece entre um ser humano e uma obra de arte. Ele define o artista como alguém que pode sonhar, transcender os dados da realidade e enxergar nos entes intramundanos outras formas de ser, além das concretas. O artista está situado no plano dos seres humanos que conseguem projetar algumas das infinitas possibilidades de um ente. O artista trabalha com o ainda não, afinado no futuro. Ele propõe que o artista não é o protagonista de sua arte, mas o instrumento que a arte utiliza para existir. O poeta é um escravo da verdade. Alguém que necessita, acima de suas forças, falar ao mundo. E sempre existe algum leitor que o acolha, que também se sinta daquela forma. O encontro entre o leitor e o poeta não é simplesmente entrar em contato com as dimensões mais esquecidas de nós mesmos, mas dar a elas uma morada, um lugar de intimidade:

“No momento em que a obra de arte me toca e me diz algo, acontece um fenômeno que poderíamos chamar de ‘reunião’. É como se eu, o artista e a coisa estivéssemos reunidos. Há aí uma sensação de harmonia, de compartilhar com o outro algo que é, de certa forma, misterioso, mas que, pelo trabalho do artista, emergiu e tornou-se presente para mim, o espectador.

Nessa reunião aconchegante vivemos uma experiência de intimidade. Diante da obra de arte, o clima de presença e intimidade parece-nos recordar algo. A palavra grega aletheia nos ajuda a compreender tal momento, pois ela, além de significar verdade, pode significar também recordar (prefixo a negativo e lethe, esquecimento). Nesse caso, o recordado diz respeito a uma sensação de que, ao mostrar-se, a coisa estava presente havia muito tempo. Tudo se passa como se o artista, eu e a coisa nos encontrássemos de novo.”

Nessa militância poética, deparo-me sempre com a generosidade do Universo, pois há o olhar atento às sincronicidades. E foi assim, uma vez mais, que descobri o MEXA.

O Coletivo, fundado em 2015, não se define como artístico, embora utilize da escrita e da performance para transformar as vivências de seus integrantes. Pessoas em situação de rua e vulnerabilidade. Através de encontros, escutas, projetos. Dar voz aos seres encharcados de paixão e incompletude. Indignados com a melancolia existencial, como os poetas.

Nessa clínica de depoimentos, que é a base de todos os projetos, viu-se a necessidade de escrever: para criar espetáculos e ocupar as ruas da cidade de São Paulo; para elaborar o vivido e transformar em poesia; para que a fala de uma pessoa pudesse metamorfosear a experiência do outro.

No sentido mais nobre da palavra, há uma contaminação: eu me contamino pela verdade do outro. Eu me enterneço pela conquista do outro. Eu enceno a luta do outro.

Terminal 10 mg é um dos diversos projetos do MEXA. Virou uma performance que passou por vários pontos de ônibus de São Paulo, durante um sábado. A história de cada um virou coletiva. E virou poesia.

Três vezes por semana, religiosamente, o grupo se reunia para compartilhar os textos que preparavam especialmente para o livro, prestes a ser lançado. Falam de estilos de escrita, compartilham cicatrizes, trazem unguentos às feridas recém-nascidas.

Internações compulsórias.

Amores de abismo.

Ao ouvir a narrativa do outro, escrevem um enredo diferente, têm uma visão modificada para um dia que estava condenado, se não fosse aquela voz, aquela tristeza. O encontro, no MEXA, traz o valor da impermanência.

Idealizam, pois, encenações que transcendam os desaparecimentos dos amigos. Torcem para que elas retornem às reuniões, antes que seja tarde demais. Afinal, nunca se sabe qual é o último ensaio de um suicida.

No livro, falam de três dimensões fundamentais de suas essências: as universidades, tão sonhadas e tão distantes de suas vidas; os açougues, aonde vão parar os seus corpos, última viagem das carnes. Os açougues se arborizam em terminais (sejam de ônibus, sejam de vidas, sejam pontos de partida. O terceiro diálogo do livro é com os hospitais – lugares dos vírus, das loucuras e das curas).

É-me muito difícil exercer a empatia, na medida que deveria, quando meus pensamentos flanam com as travestis. Os meus devaneios, por mais sujos que sejam, nunca dormiram nas sarjetas. Eu nunca estive no esgoto do inconsciente de ninguém. Jamais me expulsaram de um banheiro feminino. Não me impediram de usar o nome que escolhi para mim mesma.

Entanto, ao perceber suas narrativas, pude recriar as minhas próprias, inventar essa peça que está sendo escrita, que ainda não existe e, quiçá, nunca chegue a estrear. Como a existência que nos foi sonhada. Ensaiada. E perdida.

Deixo o trailer da celebração que ocorreu pelas ruas de São Paulo, quando o projeto foi exibido ao vivo, pelos asfaltos, pelas linhas de ônibus, pelas vozes confundidas de todos aqueles que vibravam em uníssono.

Quando fui convidada a escrever sobre renascimento pessoal, não pude parar de pensar no Terminal 10 mg, no MEXA, nessas pessoas incríveis e em todo o silêncio que habita essa poesia paulistana. Apenas outro ser humano, vulnerável e inconcluso como eu, pode me fazer acreditar que existam reinvenções existenciais.

Teaser Projeto 10mg:

Para saber mais acesse: www.grupomexa.com.br

Mariana Portela

Mariana Portela

Mariana Portela é psicóloga de formação. No entanto, sempre soube que a literatura dominava suas mãos e seus abismos. Cresceu rodeada por livros e paisagens de biblioteca. Foi estudar Comunicação em Lisboa. Descobriu que os olhos finalmente compreendiam a saudade, marejados pelo Tejo. Já participou de diversas coletâneas literárias. Sonha que um dia poderá sobreviver às custas de suas próprias palavras… Afinal, viver é fictício.