Infame

Carne Viva: Coragem de Fazer Escolhas

"Até que, se você tiver sorte, em algum momento vai se dar conta que a vida não se trata de tirar as suas guerras de uma gaveta para colocá-las em outra. A vida – de verdade – é sobre enfrentá-las".

Por Alana Della Nina |  09 de maio de 2018

Perdoe-me, ainda estou em carne viva.

Da cabeça aos pés, para ser exata.

Por fora e por dentro.

Desculpe também a falta de pragmatismo, é que estou muito humana. Não há lógica que organize essa sensação latente, profunda, quase física.

Dizem que faz parte. É preciso arrancar o couro para nascer outro melhor.

E trocar de pele dói. Leva tempo. Essas duas coisas ninguém te diz. Ninguém tem como te prevenir. Cada dor é particular e cada tempo, imensurável.

Eu mesma, sobre a dor, tenho muito pouco a reportar; ainda estou me entendendo com a minha.

Sobre o tempo, consigo adiantar sem muitas certezas que não é aquele nosso mesquinho, urgente, criança. Não o tempo linear das metáforas preguiçosas – fases da lua, lagarta que vira borboleta. Nem dos clichês sobre futuro e falácias de quem preconiza que o passado foi feito para ser esquecido. O dos outros, pelo menos.

Leva o tempo dessa vida que a gente não aprendeu a reconhecer. Não aprendeu a entender.

Quase caí na tentação de escrever que o fim é o começo. Mentira. O começo é o começo. E é um ilustre desconhecido. Dele não sabemos nada. Tem que perder o medo de deixar morrer para poder viver.

E o processo de transformação é burocrático como o diabo.

Começa pela lenta remoção da camada que já não serve mais.

Vem, então, a etapa ainda mais longa: a ferida aberta que arde a qualquer toque superficial, um sopro, um arrepio, uma intenção.

A nova derme abre caminho a partir de um lugar desconhecido. Cresce, se forma e faz casquinha que a gente arranca só pra ver se nasce de novo mesmo.

E, mais uma vez, carne viva.

***

Tem uma coisa sobre renascer que, se tivessem me dito, eu não acreditaria.

É sobre a potência que nunca te deixou. Inata, intrínseca, enraizada. Sempre esteve lá. No fundo, escondida, empoeirada, mas ali.

Por acaso, a mesma morada de todas as outras coisas: em porões menos profundos vivem nossos predadores. Inimigos de dentro que convocam inimigos de fora. Juntos, colonizadores que invadem as suas terras e te dizem como é que se deve ser e viver.
Inimigos que acentuam suas faltas, seus buracos. Você olha para eles e se dá conta só do que não tem. Eles te dão migalhas por todas as suas acrobacias e te aplaudem condescendentes, como se você fosse uma foca equilibrando uma bola com o focinho. Você se sente um pouco aliviada, um pouco orgulhosa e bastante derrotada.

Até que, se você tiver sorte, em algum momento vai se dar conta que a vida não se trata de tirar as suas guerras de uma gaveta para colocá-las em outra. A vida – de verdade – é sobre enfrentá-las.

Mais que ganhar ou perder, seguir com a coragem de fazer escolhas.

Para quem passa os dias achando que a realidade é um buffet meio escasso, com alfaces murchas e carnes acinzentadas, e se conforma com as opções disponíveis – é preciso, afinal, matar as fomes –, escolher não é verbo que se dê direito. “Você não sabia que as pessoas podiam simplesmente escolher, que as pessoas podiam mandar na vida. Você estava acostumada a viver o que a vida dava, a escrever o que a vida ditava.” [No seu pescoço, Chimamanda Ngozi]

Você não sabia. Talvez fosse melhor não ficar sabendo. Mas se alguém te conta que, sim, você pode. Escolher. Decidir. Desejar. Você precisa saber.

Só que, entre uma ponta e outra, a jornada é longa.

Entre uma esquina e outra, vai ficar tudo desorganizado e esvaziado e você sem saber onde está a cabeça e onde está o rabo. Sem saber onde estão as divisas; o que é seu, o que é do outro, o que é de todos, o que não é de ninguém.

De um trecho um pouco mais adiantado do processo, posso te contar que o auto abandono faz parte do caminho. Precede a mudança. Você se larga antes de se tomar de novo. E se distrai com alegorias grotescas que não passam de disfarces pouco sofisticados para a necessidade de se reconstruir.

Pode ser que, ao se deparar com essa imensidão, você queira recuar. De repente, é melhor ficar acostumada mesmo. Até um nó no pescoço pode se tornar confortável se você quiser, se você deixar, se você tentar.

Quem tem medo do escuro deve permanecer no raso.

Renascer pede o mergulho. Ciente do risco de afogamento.

Mas só na profundidade você encontra o silêncio.

Tem algo sobre mudar que não é desvairado, espalhafatoso, barulhento.

É quieto.

Você vai ter que bater lá no fundo para encontrar a sua verdade, camuflada sob tantas verdades de tantos outros, para chegar na sua natureza.

Mudar, no fim das contas, é sobre encontrar a si mesma.

E é profundo, agudo, dolorido, mas aguente firme.

Se a carne arde é porque você existe.

 

 

Alana Della Nina

Alana Della Nina

Alana Della Nina é de humanas, mas poderia ser de exatas – dizem. Jornalista e roteirista, prefere acreditar que é tudo um disfarce. Gosta de filosofia, viagens tretas, karate, cachorros (todos) e pessoas (algumas). Detesta: afirmações genéricas e gente que chuta a cadeira dos outros no cinema. Escreve também no Sai Dessa Vida.