Quando acordei, o universo gritou contra mim. Meu peito doía uma dor que só foi sendo minha aos poucos, enquanto a realidade me convencia sobre fatos ainda muito recentes. Lembrei que, antes daquilo, dirigia de volta para casa. Apertado, virei a cabeça pressionada contra aquele calombo de ar e enxerguei pelo vidro um pedaço de mundo. Entendi: airbag, tô vivo, preciso sair. O sol nascera havia poucos instantes, mas ainda era noite.
Dormi no volante e derrubei um poste. Ao deixar o carro e vê-lo naquele estado, apalpei todo o meu corpo por duas vezes, até ter certeza da sua inteireza. Cabeça e órgão reprodutivo ganharam, ao final, uma terceira e exclusiva checagem. Caminhei poucos metros, ida e volta, para confirmar que sentia minhas pernas. Liguei para os meus pais. Sentei no meio-fio, de costas para os destroços. Fase da negação.
Assustado, pensei que era para eu ter morrido. Notem a enorme diferença entre pensar que você podia ter morrido e achar que era para você ter morrido. A primeira reflexão pertence à pessoa ciente de riscos elementares. A segunda pertence ao arrependido de espírito, àquele que poderia ter evitado uma desgraça e, por causa disso, quase consegue enxergar tons de injustiça no seu desfecho feliz.
Comecei a chorar. Podia ter matado alguém. Pior, alguéns. Uma família inteira esperando no ponto de ônibus. Um grupo de crianças prontas para visitar o museu. Num reflexo de escrúpulo, apossado pelo peso moral de ser uma pessoa terrível, flertei com o desejo de morrer, para logo em seguida desdesejá-lo e voltar a ser grato pela vida, que continuava teimando em ainda ser minha. Os caras do resgate chegaram e um deles repetia a palavra milagre em todas suas frases, como se a houvesse aprendido no dia anterior. Só parei de chorar uns quinze dias depois.
Milagre. Renascimento. Milagre. Segunda chance. Milagre. Vida nova. Assim revezava os clichês para nomear a benção que ganhara. Estava certo de que minha vida passaria a se dividir entre antes daquilo e depois daquilo. Meu anno domini de estimação, minha própria crucificação de bolso, separando passado medíocre e futuro prodigioso, entrecortados pelo surgimento de um rio caudaloso de super-consciência de origem praticamente mística. Comecei a valorizar mais as coisas pequenas, a beleza de uma árvore na rua, o sabor da comida, os sorrisos dos meus pais. Me esforçava para agir como alguém mais iluminado. Puro teatro, porém. Menos de seis meses depois, não sentia mais nenhum resquício de aprendizado daquele acidente. A vida seguiu. A mesma vida. Nunca precisei renascer daquilo. Eu ainda era eu. Meu milagre teve limites. Não passou de uma fantasia pretensiosa que, no meio do caminho, sofreu com cortes de orçamento e precisou encolher.
A verdade é que, depois do acidente, desejei aquela crise e lutei para que fosse minha. Ao perceber a oportunidade, ao vê-la dando bobeira à minha frente, agarrei-a disposto a não largar. Precisava dela para me convencer de que a havia superado. Para sair dela como um vencedor. Um cara a ser admirado pelos outros. Mais experiente, mais maduro, mais em contato comigo. Um ritual de passagem repleto de romantismo, a legitimar uma trajetória de lutas bem-sucedidas. Mas aprendi que crise não se escolhe. Aquela não era a minha crise. Era só um susto. Um carro arrebentado que não matou ninguém. A crise de verdade só veio dois anos depois. Esse sim foi um colapso autêntico, imune a milagrinhos de baixo calibre.
Meus últimos meses foram os mais duros que já vivi. Objetivamente, nunca estive tão próximo da vida que sempre quis levar. Mas a vida não dá a mínima para critérios objetivos e prefere acontecer dentro do terreno das subjetividades. Aprendi depois de trinta e quatro anos que o homem cartesiano, aquele que busca saber e entender e equacionar as coisas, é um disfarce instrumental, um louco que aceita ser enganado, um avatar desesperado por algumas pitadas de controle. O sujeito humano verdadeiro, pelo contrário, alegra-se mais ao sentir do que ao saber. E sentir, por ser inexprimível e escapar ao campo das objetividades, é algo entregue ao descontrole. Hoje já sei ser muito grato por isso.
“Seja você mesmo”. Poucos ditados conseguem ser mais irresponsáveis do que esse, algo tão estúpido quanto dizer “saia voando você mesmo” ou “cuspa fogo você mesmo”. É irresponsável por assumir que nossa identidade já está mapeada; por acreditar que temos alguma ideia sobre quem somos; sobre o que sentimos ou pensamos.
O que forma nossa subjetividade? Ou, falando de forma mais direta: o que faz de mim eu mesmo? Até onde eu vou? Onde começo e onde termino, a partir de qual latitude e longitude não sou mais eu e passo a ser uma outra coisa estranha a mim?
Perdi o chão durante a minha crise. Descobri o quão profundo podem ir os caminhos subterrâneos da alma. Profundo o bastante para fazer esse tal do chão, a sarjeta, o fundo do poço ou qualquer outro parâmetro de deserto existencial ganhar aspectos celestiais em comparação com aquilo que presenciei lá embaixo nos porões da experiência terrena. O ser racional, seguro e conhecedor de teorias que sempre fui deu lugar a uma pessoa assustada. Andar até algum outro cômodo do meu apartamento tornou-se um desafio. Tinha medo de sentar ou de deitar, por não saber se conseguiria levantar de volta. Medo de que? Medo de ter medo. Porque aprendi que medo é uma força escalonável, e o segundo medo é pior que o primeiro, o terceiro pior que o segundo, e assim por diante. O bater do coração, até então um sinal de vida, passou a lembrar que cada batida daquelas poderia estar lá só para ser a última e dar risada da minha cara. A sensação de controle deu lugar percepções que pareciam indomáveis pela mente. O corpo cansou de dar ouvidos à lógica e rompeu com a ditadura da razão. Temi pelo risco de ficar louco. Sentia vontade de desaparecer, antes que o medo viesse de novo. Eram dores inéditas, sentidas em pedaços da alma que nunca haviam estado lá. E ao tentar me esconder deles, encontrei partes desativadas do meu ser. Partes que também me dão forma e fazem de mim, enfim, quem eu sou.
Não sei de onde veio aquela ruindade toda. Mas depois de algumas sessões de terapia, reflexões com pessoas que amo e respeito e, especialmente, longos diálogos silenciosos com cada canto escuro do meu ser, até tenho lá minhas suspeitas. Nem sempre a porrada é uma batida de carro. Nem sempre estoura o airbag e arrebenta os vidros. Nem sempre faz barulho e avisa que está chegando. Às vezes a crise camufla-se de vida e contamina seus sentidos. Filtra o mundo à luz da sua decadência, naturaliza a ruína de um viver automatizado. Ao ser encarada, ainda tem o cinismo de sorrir fingindo pertencer exatamente ali aonde está: no epicentro da sua história. E tudo isso sem derramar uma gota de sangue.
Estamos errados se achamos que só os grandes acidentes, os tiros, as facadas e esse tipo de perigo podem nos ameaçar. Os sanguessugas metafísicos discretos que se escondem nas dobras da consciência e trabalham em silêncio em turnos noturnos matam com a frieza dos piores torturadores. Qualquer imbecil percebe uma hemorragia. O real desafio está em pinçar esses pequenos animais que assassinam pacientemente, enquanto fingimos e tentamos equilibrar nossas vidas disfuncionais como um pratinho giratório prestes a explodir no chão.
Infelizmente, não existe receita para sair de uma crise desse tamanho. O que funcionou para uma pessoa poderia muito bem arrastar outra ainda mais para o buraco. Falando com base na minha experiência, posso mencionar algumas coisas que seguraram na minha mão e me trouxeram até aqui. Lembro do dia em que pedi a Deus para que o medo passasse. Se fosse preciso, estava pronto para exigir, decretar, chantagear, trocar um pouco da minha fé por recompensas transacionáveis no balcão das crendices. E então me senti ouvido, esvaziado daquele fardo, a ponto de gritar ‘obrigado’ bem alto pela janela. Ou do dia em que nada me acalmava e enfim resolvi escutar “So What” (“E daí?”, em português) do Miles Davis, uma música instrumental feita só para ser sentida e que, sem o uso de palavras, me convidou a perguntar: e daí que está doendo, quem disse que não aguento? Sem esquecer de quando, reconhecendo minha fragilidade, voltei para a casa dos meus pais por alguns dias e adormeci no colo na minha mãe vendo um filme terrível que jamais aceitaria ver em circunstâncias normais. Naquele dia eu entendi o amor. Entendi por senti-lo e não por encontrá-lo nos dicionários ou estudar sua origem morfológica.
Afasto um pouco o zoom dessas imagens e começo a olhar para minha vida como um todo. Lembro do dia em que a Renata, minha primeira paixão, chegou mais cedo ao meu aniversário de dez anos, na piscina da casa da minha tia. Lembro do Iggy Pop tocando “Lust For Life” quando o assisti pela primeira vez ao vivo, enquanto eu pulava contra uma roda de outros espectadores endoidecidos. Lembro do meu pai chegando em casa e revelando ter negado, por questões éticas, o convite para receber muito mais e trabalhar na sua maior concorrente. Lembro da festa de Réveillon de 2012 em Barra Grande, o dia em que eu e alguns dos meus melhores amigos ajudamos a condensar toda a alegria da humanidade em uma pequena praia na Bahia.
Ao lembrar de todos esses momentos me dou conta de que a vida não é contínua; não é essa coisa com começo e fim tão bem delineados como a imaginamos. Assim como nós também não somos sempre os mesmos. Nós e a vida somos irregulares, despedaçados, ajuntamentos.
Em “Morte e Vida Severina”, clássico de João Cabral de Mello Neto, Seu José diz o seguinte quando perguntado por Severino:
— Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga, há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida? Espera poder um dia comprá-la em grandes partidas? — Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.
É, Seu José, estou contigo: vida é um negócio que se compra aos poucos.
Conheço um senhor que, pela sua sabedoria, costuma ser convidado a aconselhar pregadores em seus dramas pessoais. Uma vez me contou que, ao ouvir os relatos de um pregador mais novo, concluiu seu parecer com a seguinte frase: você precisa se converter. O jovem não entendeu nada. Como um pregador pode se converter sem nunca ter abdicado da sua fé? São esses os mistérios das coisas que não precisam acabar para começarem de novo. Como a vida, que é tão grande e hospitaleira que se contorce toda e dá um jeito de fazer caber outra vida dentro dela própria. Uma vida dentro da vida, algo que conforta a alma das tantas pessoas que nunca precisaram morrer para nascer uma outra vez.
A vida é um retalho. O que separa um retalho do outro são remendos sem muita importância. Que sejam feios, que sejam sofridos, que sejam amargos, desde que sirvam para conectar uma vida à outra. Pois é nesses momentos extraordinários em que se vive. Na praia da Bahia, no colo da mãe, gritando obrigado pela janela. Se me vejo pensando que um dia aquela dor pode voltar, lembro que toda dor é finita, nascida para servir de ponte, criada para ser interrompida pelo próximo retalho que fará tudo ganhar sentido. Prefiro acreditar que entre uma vida e a outra ainda somos nós ali congelados, aguardando o momento certo, até chegar a hora de viver mais um pouco. Porque é isso que os retalhos fazem por nós: não deixam a gente morrer enquanto esperamos. Do jeito que somos, aceitos, benquistos, incompletos. Eternamente gratos por não sabermos a direção. Contagiados pela beleza do descaminho.