Infame

Mundo Corporativo: um Lugar Estreito

"Enfim, sobram apenas 2 horas por dia útil para você fazer o que mais interessa para você e para a humanidade: viver, fora do automático, para além de ganhar dinheiro. E no fim de semana tomara que você saiba aproveitar. Mas conheço muita gente (e eu me incluía nessa), que usa o sábado para o salão de beleza, as compras no supermercado, para dormir até mais tarde, para levar e buscar os filhos nas festinhas, ir ao shopping comprar presente… ou se divertir com o que dá, tipo encher a cara, cair na balada, morgar".

Por Paula Z. Gabriel |  11 de abril de 2018

Certa vez li um texto que já não lembro mais de quem era. Explicava por que os empregos tradicionais, com bons salários e cheios de benefícios, eram o grande mal da humanidade. Por que a CLT viciava e quais as consequências desse vício. Aquilo fritou a minha mente.

Para entender a tese daquele autor, com quem minha memória estará em dívida até o fim dos tempos, é preciso relembrar uma equação básica: seu dia tem 3 terços: 8 horas de trabalho (pela lei), 8 horas de sono (pelo que sabemos ser necessário e saudável) e 8 horas ‘livres’, para o que mais você ‘quiser’ fazer. A essas 8 horas de trabalho, 5 vezes por semana (sem considerar horas extras não remuneradas) você dedica o melhor da sua energia, que coincide com todo o tempo em que o sol está no céu. Sua energia vital está alinhada com o tempo em que você fica exposto à luz solar, que é quando a maioria das pessoas produz mais e melhor. Este filé mignon da sua energia, vale lembrar, não está sendo usado para sua empresa, seus filhos, suas criações, mas sim para aumentar o lucro da empresa de alguém ou de alguns acionistas, que provavelmente você nunca virá a conhecer. Ora, a menos que você um dia vire dono, sua vida será dedicada a trabalhar para alguém e depender 100% daquele sistema, seja você bem sucedido ou não, enriquecendo ou não.

Das suas outras 8 horas livres (quando são mesmo 8), você usa pelo menos a metade para se sustentar naquelas 8 de trabalho (deslocamento no trânsito, almoço comercial, acorda cedo para se arrumar, etc). Digamos que para café da manhã, jantar e banho você gaste mais um total de 2 horas. Então, com sorte, te restam apenas 2 horas por dia para alguma atividade física (fundamental para a saúde), alguma atividade intelectual ou criativa (fundamental para a mente) e para passar com a família (educar filhos, visitar os pais, telefonar para os irmãos). Isso sem falar em consumir arte, contemplar a natureza, dialogar com seu cônjuge, transar. Ah, e se você tem amigos, vai precisar dedicar uns minutinhos a eles.

Enfim, sobram apenas 2 horas por dia útil para você fazer o que mais interessa para você e para a humanidade: viver – fora do automático e para além de ganhar dinheiro. E no fim de semana tomara que você saiba aproveitar. Conheço muita gente (e eu me incluía nessa), que usa o sábado para o salão de beleza, as compras no supermercado, para dormir até mais tarde, para levar e buscar os filhos nas festinhas… ou se divertir com o que dá, tipo encher a cara, cair na balada, morgar. Raramente sobra energia para um livro ou um projeto pessoal que coloque algo criativo no mundo.

Acontece que o ócio, meus amigos, nada mais é que o espaço para o desenvolvimento das habilidades que você não necessariamente tem. Aquele tempo ‘livre’ de trabalho é o tempo de ler, pensar, criar, ter insights, enfim, crescer como ser humano, como mente pensante, como agente de mudança no mundo, independentemente do que você faz para o seu sustento material. Há profissões menos automáticas ou mecânicas que outras, claro, mas mesmo nas mais criativas, se estão ligadas a fazer ‘caixa’ ($), por comida na mesa e garantir o futuro, não são um tempo de ócio, são um tempo de produzir para o capitalismo. Esse raciocínio data da Grécia antiga. Diz-se dos gregos que, durante o ócio, aprendiam instrumentos musicais, artes, filosofia, línguas. E que quem não estava disposto a usar esse tempo ‘para desenvolver novas habilidades’ preferia usar todo o seu tempo para fazer ‘negócio’. Neg – ócio vem de ‘negar o ócio’ e está ligado a mercado, comércio, empresa (segundo o dicionário). É o que envolve a atividade estritamente dedicada a se obter dinheiro, em última instância. Conceitualmente, o negócio dispensa o ócio. E a nossa época não tem deixado espaço para muito ócio, isso quando não o transforma, equivocadamente, em ‘falta do que fazer’.

Base colocada, posso então contar a tese do desconhecido autor que me rendeu uma ‘eureka’. Pense num sujeito relativamente bem sucedido, que ocupa o cargo desejado e ganha um ótimo salário. Na lógica da CLT, quando ele entrega o melhor da sua energia (durante a presença de luz solar) para o mercado corporativo, ele o faz incentivado por uma cenourinha chamada “ótimo salário”. Então esse sujeito, dedicado a fazer seu “pé de meia” entre os 30 e os 45 anos, entrega toda a sua energia disponível ali, no trabalho, para o negócio de alguém. E ele sai tarde do trabalho, quando já está escurecendo, mas ainda precisa tocar todo o ‘resto’ da sua vida e, se possível, ter algum prazer. Então ele paga o que for preciso por conveniência: comida depois das 22h, delivery, compra ítens no posto de conveniência, chama um táxi porque o metrô fechou, reserva aquele hotel para alta temporada com a namorada, pega estrada lotada na saída e na volta do feriado (que é quando ele pode viajar). E com isso vem uma avalanche de merecidas compensações caras: ele almoça naquele restaurante chique (afinal, ele merece esse mimo); enche a cara (afinal, ele merece relaxar); gasta os tubos num hotel de luxo nas férias, voa de executiva, compra, compra, compra. Afinal, ele merece.

O vício no conforto da CLT gera uma dependência que se retroalimenta: ganha-se muito dinheiro para se gastar muito dinheiro. E para se acreditar que não dá para viver bem de outra maneira. Assim, somos escravizados pelo nosso próprio medo de criar outras formas mais saudáveis de se viver e trabalhar (com menos dinheiro, mas com mais produtividade). E, mesmo que não tenhamos esse medo, também não nos sobra energia para gerar muita coisa nova. Mais uma vez é preciso lembrar: a lógica imposta pelo mercado corporativo não está deixando espaço para o ócio criativo. E por que deixaria, se o capitalismo se alimenta justamente das coisas como estão, do lucro para os grandes e do medo da escassez? Nada contra o capitalismo, até porque eu não tenho nada que funcione para sugerir como substituto. Mas que ele já dá sinais de colapso há algum tempo, isso dá. É insustentável viver vibrando na escassez quando a natureza, na verdade, é abundante.

Era o que eu precisava ouvir naquela época. Esse raciocínio era o elo perdido entre meu desconforto com o mercado de trabalho e a porta de saída para uma vida nova. Quando entendi isso, ganhei uma intolerância incontrolável com esse formato das 8 horas por dia sentada em frente a um computador. Meu corpo pedia arrego, minha musculatura dava sinais de fragilidade, eu não lia mais que 3 livros por ano (dormia sempre na terceira página), passava meses sem ir ao cinema e voltava de todas as férias pagando os tubos no cartão de crédito e deprimida por ter que retomar o batente. Perdi o medo? Não. Mas usei a prerrogativa do insuportável para encontrar na grande amiga ‘dúvida’ um caminho muito melhor que o daquela ‘certeza’, que já não funciona mais. A alternativa? Vai de empreender (para quem tem perfil e estômago) até ser freelancer para o mesmo mercado que te contratava, contanto que você consiga se enxergar um pouco fora desse sistema e entender que não é o único modo de ser remunerado para viver bem.

Estamos vivendo tempos de questionar, de rever conceitos, de inventar formas mais sustentáveis de vida, consumo, trabalho. Simplesmente porque não há lugar para todos nessa lógica da escassez. Se você prestar bem atenção na História humana, vai notar que existiram 4 categorias de pessoas, quanto ao tipo de trabalho que realizaram em suas vidas: as que foram escravizadas, as que viveram de subsistência e nunca acumularam um extra para ter descanso, as que nasceram privilegiadas e administraram ou gastaram suas fortunas e as que, por talento ou vocação, trabalharam para criar o novo, puseram sua energia no mundo para transformá-lo e inventaram a realidade que conhecemos hoje. Sinto que o sistema corporativo nos mantém vibrando nos padrões de subsistência e escravidão (dependência, medo, escassez, competitividade) e que precisamos produzir mais indivíduos criativos e agentes de mudança. E esse mesmo sistema corporativo, mais cedo ou mais tarde, vai acabar reconhecendo seus excessos e descobrindo vantagens em enxugar formalidades. Você já parou para pensar que sua produtividade em 5 horas úteis de trabalho pode ser a mesma (ou até maior) do que em 8 horas obrigatórias em que você ‘bate ponto’? Quantas reuniões arrastadas você já fez? Quantas pausas para um café, quantas enroladas no corredor, saídas para fumar, quantas vezes entra em redes sociais para dar uma relaxada, deixar o cérebro vagar um pouco ou simplesmente para escapar da pressão? Sem falar nas 2 horas de almoço. Pense em quanto uma empresa economizaria com 3 horas a menos de energia elétrica e funcionários mais motivados? Reduzir tempo de permanência num escritório é vantagem para ambos os lados.

Sim, há um preço em se largar a segurança. Mas a sua consequência será a liberdade. Percebi isso quando me vi podendo ir ao cinema na sessão das 16h, sala vazia; quando passei a viajar para a praia de quinta a sábado, estrada livre; e quando me vi fazendo um almoço de quase três horas, que me rendeu uma ótima ideia para um negócio. A decisão de abandonar o terreno seguro em direção à incerteza é uma velha conhecida da humanidade, data de mais de mil anos antes de Cristo e colocou um povo inteiro a fugir da escravidão no Egito sem garantia nenhuma de sobrevivência fora daquele sistema (referência: êxodo do povo judeu/Moisés). Nilton Bonder, em ‘A Alma Imoral’, chamou isso de “lugar estreito”: quando um lugar fica demasiadamente apertado, não há outra saída senão se mandar de lá, mesmo que sem rumo, lançando-se no desconhecido. É uma condição natural humana, que se repete muitas vezes ao longo da vida e nos obriga a mudar. Graças a ela, a gente evolui, coletiva e individualmente. Sinto que, à base de antidepressivos e vendo a via corporativa como única alternativa a tantas carreiras, estamos evitando as contrações naturais do que deveria ficar estreito para nós.

Desejo que mais pessoas possam se perceber em seus lugares estreitos corporativos, não vejam outra solução senão sair deles e se lancem em outros empreendimentos, criem novas formas de prosperar e de viver em sociedade, para seu próprio bem e para o bem de quem puder seguir seu exemplo. Que se possam aliviar as estradas para a praia às sextas-feiras e povoar as salas de cinema nas sessões das 16h. A nossa vida privada está precisando de alternativas às grandes corporações. A vida em sociedade também.

 

Paula Z. Gabriel

Paula Z. Gabriel

Paula Gabriel é uma paulistana meio carioca e muito orgulhosa do Brasil. Formou-se em Comunicação Social /Publicidade pela ECA-USP, tem especialidade em Semiótica Psicanalítica pela PUC-SP e é mestre em Antropologia Social pela LSE (London School of Economics and Political Science). É DJ de rock, indie rock, nu disco, electro rock e de vários estilos de música brasileira, além de co-fundadora da ‘Festa Samambaia’. Gosta de escrever e é fã do Infame.