Infame

Um Mergulho Abstrato em Intervalos Ocultos e Sentimentos Elementares

"Como a intersecção entre um livro de Clarice Lispector, publicado em 1965, e um álbum de música experimental, lançado em 2017, me trouxe ao agora"

Por Fernanda Thome de Souza |  28 de março de 2018

No final do ano passado eu caí por acaso em um curioso espaço de intersecção entre dois trabalhos artísticos: um livro publicado em 1964, e um álbum lançado em 2017. O primeiro, A Paixão Segundo G.H. de Clarice Lispector, trata de uma determinada, quase delirante busca pela mais pura essência existencial. O romance inteiro se dá no estreito espaço entre uma cama e um guarda-roupa de um quarto de empregadas, escondido nos fundos de uma luxuosa cobertura no Rio de Janeiro. A jornada no entanto metafísica da personagem, irrompida pelo inesperado encontro com uma barata, relativiza a experiência de espaço. Em um laborioso trabalho de abstração até o irredutível máximo, à procura de pistas de uma matéria primordial, Clarice convida seus leitores a navegar pelo infinito espaço que há entre as coisas, sejam elas grãos de areia ou notas musicais.

Assim como o livro de Lispector, a experiência abstrata da música experimental não é sempre uma alegria fácil. Ambos, à sua maneira, convidam para um passeio fora dos trilhos e propõem o encontro de uma retidão em certa desordem. É comum resistir. Como a personagem do livro, eu mesma tenho medo de viver aquilo que não entendo. Mas o exercício de admitir o desconhecido e render-me a ele tem me ajudado a desconstruir esse muro e a visitar lugares os quais nunca imaginei.

No outono último a Subtext Recordings fez uma label night no Säule, em Berlim. Fui para ouvir Ellen Arkbro tocar seu novo álbum, For Organ and Brass, o qual eu vinha timidamente desfrutando na solidão dos meus fones de ouvido. Arkbro foi a primeira a tocar e a casa não estava ainda completamente cheia quando o som trovejante do órgão tomou todo o lugar. Foi como se um brutal, e no entanto indiferente sol surgisse abrasador e seco. Pregos, juntas, parafusos: cada liga daquele espaço industrial dilatou-se paulatinamente. No prorrogar das notas o momento ficou suspenso no ar como poeira. Aquela ressonância, aquela respiração neutra como que aparte do tempo ecoou em mim como o silêncio repetidamente descrito por G.H. ao longo do livro, e eu não pude se não sentir como que aterrissando entre o desconcertante espaço que há entre as coisas.

A experiência me marcou muito. Curiosamente eu mais tarde vim a descobrir que o album For Organ and Brass é de fato um mergulho abstrato em intervalos ocultos. A música título foi composta para um órgão com um tipo de afinação específica chamada temperamento mesotónico, um método que visa soluções tonais usando os chamados intervalos puros. Foi em uma igreja em Tangermünde, no nordeste da Alemanha, que Arkbro encontrou o instrumento ideal para para a composição, o barroco Scherer-Orgel de 1624. O que ela nos confere como resultado é uma harmonia de deleite simples, um lugar quente para se deixar estar.

Todavia, mais especificamente do que nos intervalos, é na rendição à uma humilde, profunda e pontual experimentação de simplicidade que Clarice e Ellen se encontram. É no livrar-se de tudo que não é essencial, na redução máxima e intuitiva dos seus recursos – para a escritora, a língua; para a compositora, o som – que elas se aproximam e restauram a elegância e beleza de uma verdade elementar. Ao enfocar e dilatar aquilo que possuem como instrumento elas revelam a pureza e a imensidão do agora: o tempo inchado até os limites. O que parece vibrar na calma modulação harmônica de Arkbro, o que parece arrastar-se a si mesmo, é o presente. “A grande monotonia de uma eternidade que respira”, como diria G.H. Para nós, espectadores convidados, chegar pelas suas mãos a esse lugar remoto é experimentar por uma fração de tempo a infinidade do agora, a consciência cósmica de si próprio.

 

Fernanda Thome de Souza

Fernanda Thome de Souza

Fernanda é uma cidadã de Berlim há 10 anos. Gasta três dias por semana fazendo dinheiro como Gerente de Marketing num hostel. Os outros quatro lendo, escrevendo e se perdendo.