“A noite era cheia daquelas pequenas nuvens muito brancas, que se destacam umas das outras. Vista através de uma ou outra delas, a Lua tinha em seu torno um halo azul, castanho e amarelo, com uns tons supostos de verde-vivo. Entre as árvores o céu era dum azul-negro profundíssimo, longínquo, irrevogável. As estrelas viam-se ora através das nuvens, ora, muito longe, mas entre elas. Uma saudade de coisas idas, de grandes passados da alma, talvez porque em reencarnações antigas, olhos nossos, no corpo físico, houvesse visto, este luar sobre florestas longínquas, quando selvática ainda, a alma infanta talvez pressentia, por uma memória em Deus ao contrário, no futuro das suas reencarnações, esta lua retrospectiva. E assim essas duas luas davam mãos de sombra por sobre a minha cabeça abatida”.
Bernardo Soares/Fernando Pessoa
Não faz muito tempo que minha melhor amiga veio me confidenciar o sonho fenomenológico que teve, dias após ser mãe. Ela conversava na varanda de uma fazenda com meu pai – aquele ser digno de desdenhar os bestiários de Cortázar – em noite de lua cheia.
Talvez ele seja a pessoa mais capaz de transformar o realismo fantástico em verdade, no piscar de uma galáxia. Até consigo ouvir sua voz, naquela noite em que não sonhei, naquela pele onde nunca vivi.
Meu pai, em seu enredo, alertava-a sobre o famoso erro de continuidade de um filme irretocável. Sua epifania, ao despertar, habitava os domínios extraordinários do óbvio: a maternidade não poderia abrigar tais descuidos.
Pensei, embasbacada, apaziguando meus silêncios em sortilégios: e se o maior erro de continuidade fosse a minha existência? Estaria eu blasfemando contra a memória de todas as mulheres que caminharam até minha íris? Seria agora o momento de interromper essa escravidão cardíaca das estrelas?
E se formos, todos nós, erros de continuidade, insistentes numa redenção impossível, delirantes com a vergonhosa liberdade? Suplicamos a vida toda por magos, que sobrevoem as biografias, espalhando os famosos goles de velhice?
Aquela conversa, indecifrável, fez-me indagar acerca da minha ancestralidade. Por que, meu Deus, havia tanta fertilidade nos nossos dilúvios?
Herdamos os planos enclausurados, as cartas de amor seculares, uma linhagem de poetas. Contudo, ainda assobiamos as canções milenares, em madrugadas de festa? O café sempre cheira a saudade? Estaremos luminosas, quando a solidão cair do céu?
Pergunto a essas mulheres que me traçam o espírito: qual o peso que se produz entre o escuro e o entardecer? Em quais revoluções intrínsecas devo lutar? Com o dinheiro que sobrar para a viagem: quais parentes visitar? Quantas são as fragilidades que estou autorizada a convidar, quando vir uma alma em frangalhos?
Ah, fardo irremediável da delicadeza!
Só peço, em vertigem anciã, às amadas que navegam pelo meu sangue: preservem-me alguma sanidade. Há mais dor no instante que precede o despertar da ferida. Acho que nenhuma dor dói, desde que não seja incomodada.
E reitero, enfim: nunca se esqueçam da minha devoção às palavras. Pois aprendi que não se morre de amor; morre-se de cachaça. Quando ideias se tornam interiores, esqueço-as como moedas. Um dia, reencontro-me com elas, em lugares inusitados. A mim, sobram-me os caminhos, que perco tanto quanto canetas. Só que as canetas me fazem mais falta do que as estradas. As canetas são as avós do futuro.
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Trecho do livro “Viver é Fictício”, de Mariana Portela, a ser lançado amanhã pela editora Laranja Original.