Infame

Pichón: um Tratado Negro para a Esquerda Racista

"O racismo, que nos estrutura enquanto sociedade, não deixa de se embrenhar também nas fileiras mais progressistas – explicitá-lo e evidenciá-lo se torna cada vez mais necessário se estamos falando em transformação social".

Por Bruno Vieira |  19 de fevereiro de 2018

No Natal de 2017 eu me dei um presente: comprei a versão em português de Pichón – Minha Vida e a Revolução Cubana (Ed. Nandyala), autobiografia de Carlos Moore que vem trazer à tona os enfrentamentos que ele teve com o regime castrista ao desejar combater o racismo do governo. Este livro se tornou, para mim, uma grande referência do quão complexo e necessário é o embate antirracista na Esquerda. O racismo, que nos estrutura enquanto sociedade, não deixa de se embrenhar também nas fileiras mais progressistas – explicitá-lo e evidenciá-lo se torna cada vez mais necessário se estamos falando em transformação social.

Em 14 de junho de 2011, eu tive o meu primeiro contato pessoal com Carlos Moore, no Centro Cultural da UFMG, em Belo Horizonte. Tratava-se do lançamento da versão em português de Fela – Esta Vida Puta, biografia de Fela Kuti, o pai do afrobeat, pela Editora Nandyala, cuja sede é na cidade. Revi Moore em um seminário promovido pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), que tinha o sugestivo nome de I Seminário Fela Kuti da UERJ: A educação, os movimentos sociais e a África que Incomoda. Foi um evento de uma semana que me deixou bastante sacudido com tudo o que acontecera. Nesse seminário, aconteceu um embate entre Carlos Moore e Mauro Iasi, do PCB por conta de uma querela antiga: o fato de a Esquerda tradicional não admitir que ela é racista.

Pichón se detém nessa narrativa. Moore é cubano de ascendência jamaicana (daí o sobrenome anglófono; muitas pessoas do Caribe que fala inglês migraram para Cuba de 1910 a 1930, caso dos pais de Carlos). Sua vida é marcada por muitos eventos: a carestia que assolava a casa onde moravam em Central Lugareño, na região de Camagüey; o conflito eterno com a sua mãe; a mudança para os Estados Unidos ainda adolescente; o envolvimento com o movimento negro estadunidense; o retorno a Cuba para lutar na revolução; tudo isso aconteceu na vida de Moore antes dos 22 anos.

O termo “pichón” é um xingamento pesado: significando “filhote de urubu”, a palavra tem relação com os imigrantes jamaicanos, haitianos e outros que, em uma época da história cubana, tiveram que sobreviver na ilha buscando comida no lixão ou onde houvesse restos. Pichón, dessa forma, é um termo muito do racista, pelo o que entendi um dos mais pesados que existia (não sei se ainda existe) em Cuba.

Para mim, que sou homem negro, Pichón é um tratado. Contando a trajetória de Moore, um homem preto em uma eterna diáspora (interior a si mesmo e exterior aos outros sujeitos), o livro apresenta a forma como nos é negada a humanidade enquanto sujeitos racializados. Ele denuncia, a partir de um ponto de vista pessoal que se projeta no coletivo, como nós, homens pretos, forjamos a nossa lida com as relações afetivas e psicológicas que tecemos com as outras pessoas (o Frantz Fanon, em Pele Negra, Máscaras Brancas, destrincha isso com mais profundidade). Ao mesmo tempo – ou não sei se em decorrência disso –, o livro discorre sobre a forma tosca como o regime castrista perseguiu Carlos Moore, que “apenas” queria combater o racismo que ainda vigorava em Cuba por meio do governo de Fidel.

Trata-se de uma narrativa necessária à Esquerda em geral para que se atente de que ela também pode reproduzir como perpetuar esquemas nefastos de racismo. Por mais que o governo anterior a Castro tenha sido também ditatorial, Fulgencio Batista era um presidente negro, e boa parte do seu primeiro escalão de ministros também era composta por pessoas negras. O governo Castro, como denuncia Moore, não tem pessoas negras no seu alto escalão (quiçá apenas uma, que ele conheceu enquanto ainda morava nos Estados Unidos). Essa informação de que Batista era negro me deu uma completa bugada, porque essa é uma informação omitida pela Esquerda que vangloria a Revolução Cubana. E essa bugada minha me diz, eu acredito, da complexidade que é a interseção entre raça e classe, entre classe e gênero, entre gênero e raça. Essa parte do livro me deixou extremamente interrogativo, reflexivo e pensativo.

Ainda que não intencionalmente, Carlos Moore nos desperta em Pichón a necessidade da interseccionalidade como eixo de ação política, não uma mera teoria que tente contemplar todas as categorias sociais. A interseccionalidade reside no fato de se perceber as diversas hierarquias de opressão ocorridas em diversos setores sociais, de acordo com o momento histórico. Era dever da Revolução de empreender formas de se combater o racismo, mas fala repetitiva de Fidel Castro que dizia não haver mais racismo em Cuba não era suficiente. Tanto não era que um sujeito racial e politicamente consciente como Moore, ao questionar isso do regime, foi perseguido por ter apontado a persistência de uma falha, de um erro. A promoção meramente econômica não é capaz de acabar com as discriminações raciais, é um engodo pensar que a superação das classes vai superar as diferenças raciais – quem viu os primeiros minutos do primeiro episódio de Raio Negro na Netflix vai entender o que quero dizer com essas palavras.

Inegável que Fidel Castro e a Revolução Cubana são um marco importante na história da Esquerda mundial. Cuba se lançou na esfera global como uma alternativa de mundo, como uma possibilidade de transformação social. Mas igualmente importante é Carlos Moore, um sujeito que quase morreu nas mãos de um regime que não tolerava críticas. O racismo é estrutural ao ponto de ser um ponto comum entre Esquerda e Direita – não nos enganemos, pois a Esquerda pode ser racista tanto quanto a Direita ao negar a voz e a vez e a oportunidade de pessoas negras estarem também à frente das lutas de classe e ao negar a raça como eixo estruturante de tal luta. A complexidade desse debate me faz remeter à necessidade de a Esquerda cada vez mais se empretecer e se embasar no discurso da luta de classes a partir do enfrentamento antirracista. (Óbvio que gênero, orientação sexual, território e outros marcadores sociais entram aqui.) Já é hora de deixar de lado o discurso do “isso fica para depois” e empunhar a necessidade do enfrentamento de raça, classe e gênero agora. A Esquerda tem que se empretecer e criticar sua branquitude, seu racismo e todos os seus processos internos de opressão. Não se trata de uma simples e rasa “política identitária”, mas o pleno reconhecimento, dentro do espectro progressista, da necessidade de se incorporar essas lutas como um elemento direcionador (e talvez unificador) da Esquerda.

E não se engane: eu não sou um “agente da Direita” ao criticar o racismo da Esquerda. Essa história de que quem critica a Esquerda é de Direita é algo ultrapassado, arraigado no século passado, fruto de uma negação e de uma viseira que só faz enxergar um elemento estruturador da sociedade. Carlos Moore também já foi tachado de “agente da CIA” por criticar o racismo do regime cubano – ao mesmo tempo em que era investigado pela CIA por seu envolvimento com o movimento negro estadunidense e na França, onde residiu nos anos 1970. Eis a eterna diáspora de um homem negro, seja à Esquerda ou à Direita: a incapacidade de ambos os flancos políticos de nos enxergarem como sujeitos, como pessoas, faz com que nos situemos à deriva.

Daí é sempre importante recordar Sueli Carneiro, que entre ser de Esquerda ou de Direita, eu sou preto. Me forjei politicamente pela via da Esquerda, mas espero cada vez vai negritar a minha consciência política. Que haja cada vez mais pessoas como Carlos Moore que se propõem em denunciar e abalar o racismo que se envereda nas nossas estruturas sociais.

 

Bruno Vieira

Bruno Vieira

Bruno Vieira é jornalista formado pela UFMG. Belorizontino nato, atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social na mesma instituição, pesquisando juventude, ação política e políticas públicas. Tem trajetória no terceiro setor em assuntos relacionados a cultura, educomunicação, mobilização social e comunicação comunitária. Integra o coletivo Pretas em Movimento, de BH.