Infame

Sô Murilo: Samarco e os Órfãos de um Rio que um Dia foi Rio

"Entre seus afazeres diários, Murilo não quis dar uma volta de canoa pelo rio, mas com um olhar certeiro diante daquela água marrom cor de rejeito, disse que está cada vez mais difícil navegar. “Na hora que você bate o catuá e firma, é só barro”.

Por Nilmar Lage |  07 de fevereiro de 2018

“Eu tinha 21 anos quando entrei pra lá ó”, Sô Murilo aponta as proximidades de sua primeira morada à beira do Rio Doce. Nascido nas proximidades de Joanésia, mas residente desde novo do Naque (leste de Minas Gerais), a experiência de seus 92 anos não o deixam esmorecer pelo abandono e falta de reconhecimento enquanto atingido pelo crime da Samarco. Já se passaram mais de dois anos desde o rompimento da barragem de Fundão e depois de perder sua casa e criação de animais na lama tóxica, Murilo continua na luta por seus direitos. Diante da ausência de culpados e de assistência, segue como sempre foi: ele por ele.

Na baforada do cachimbo é que revela sua verdadeira identidade: José Lino Marques, mas poucos o conhecem assim. Sô Murilo é como gosta. As lembranças seguem e ele descreve como eram aquelas terras 70 anos atrás: “Aqui só tinha estrada estreita, boi pra arrastar madeirão, burro puxando carvão. As estradas era isso aqui ó, canudinho ó”. Revelando o estereótipo do mineiro bom de papo, Murilo vai falando e gesticulando. Mostra com as mãos medindo o ar uma medida que não é nem léguas, nem metros, nem pés, mas algo que parecia ser da largura de um trilho de boi mesmo, um canudinho.

Canoeiro aposentado e pescador apenas para subsistência, fomos ao porto onde fazia a travessia do Rio Doce. Curau, um amigo, estava lá na ativa. “Ê Curau, essa estrada aqui não é sua não”, ao mesmo tempo que brinca com o amigo, alerta com autoridade e o respeito daqueles que sabem da mão e contra mão do rio, evitando correntes indesejadas e possibilidades de virar a pequena embarcação. Diante de toda sua vivência, afirma: “O verdadeiro nativo do rio é eu, tem gente que nunca molhou o pé nas águas do rio e tá recebendo (a indenização)”. Esbraveja calmamente sô Murilo, referindo-se ao fato de até hoje não ser reconhecido como atingido e, naturalmente, receber a “devida” indenização.

Morando sozinho na casa de sua companheira, ali pertinho do rio, seu primeiro amor, Murilo não possui água encanada e energia elétrica. Ele tem é disposição de sobra para buscar água na cidade para ele e em uma fazenda próxima para a criação. Fazendo uma cuia com as mãos e simulando que bebia algo, Murilo lembra que dia desses experimentou da água do rio, a mesma que ele usou por quase todos esses anos: “ô moço, é a mesma coisa de fezes de boi”.

Entre seus afazeres diários, Murilo não quis dar uma volta de canoa pelo rio, mas com um olhar certeiro diante daquela água marrom cor de rejeito, disse que está cada vez mais difícil navegar. “Na hora que você bate o catuá e firma, é só barro”. Todo bom canoeiro sabe que o catuá precisa tocar uma superfície firme para que o empurrão tracione a canoa no sentido certo, ao tocar no barro, ele afunda e não cumpre sua função.

Murilo não é reconhecido como atingido, talvez por não ter mentido e confirmado que não é pescador e sim canoeiro aposentado. Mas como ribeirinho, depende da água do rio para beber, lavar, banhar, tratar dos animais, viver. “Eles dizem que é pra eu ficar tranquilo, que eu vou receber. Eu tô esperando, mas o ano lá vai. O tempo lá vai.” O dinheiro de uma eventual indenização seria para comprar mais criações e talvez aumentar os ganhos.

Outro trago no cachimbo e o suspiro revela a pouca esperança de ver o rio limpo. “Se vier outra enchente de agua limpa, pode ser que por cima limpa. Mas o fundo, o fundo não limpa fácil não”.

Diz o folclore brasileiro da existência do Nego d’Agua. Um homem negro e alto, que nunca sai do rio e possui o corpo coberto por escamas. Sua função é assustar as pessoas que atravessam suas águas. Murilo talvez seja um Nego d’Agua paz e amor. Ele não vira canoas, mas gosta de cachaça, fumo e rio.

 

Nilmar Lage

Nilmar Lage

Nilmar Lage tem apreço pela experiência de ser acolhido pela cumplicidade das pessoas com quem lida e transformar isso em histórias, materializando essas vivências através da fotografia e vídeo documental, ou da agressividade sonora do hardcore.