Infame

A Loucura Mora em Casa

"Meu pai tinha grana para internar minha mãe numa clínica boa, a melhor, eu acho. Mas e quando não se tem? A gente corre para onde? Porque, quando ela surtou e me encheu de porrada, um vizinho ouviu e chamou a polícia. Quem tem coragem de entregar a mãe para polícia? Eu disse que não era nada, eles queriam conversar comigo, mas eu fiquei quieto".

Por Deborah Brum |  25 de janeiro de 2018

R. tem cinco anos e percebe que algo vai mal, estranho, na sua casa. O dia está quente, seu pai já foi para o trabalho, mas novamente sua mãe não sai da cama, envolta em lençóis que lhe cobrem a cabeça, talvez por medo, pensa R., de um monstro?

R. passa o dia com a babá desde que sua mãe ficou doente, já faz quase dois anos, e ele não desconfia do horror que será seu futuro, das consequências e impactos de ter uma mãe com transtorno psiquiátrico. Anos passarão e R. não saberá para quem recorrer, porque de doença mental ninguém fala.

É verão, as noites quentes e tristes para ele, acostumado a esperar seu pai do serviço, ansioso, em frente à porta da entrada, a mesma por onde R. sairá aos dezoito anos.

Muito se fala dos doentes psiquiátricos, mas pouco de suas famílias, do sofrimento vivenciado por todos aqueles que não os abandonam num manicômio. Esquecermos dessas pessoas, dos familiares, é também negar um aspecto importante do tratamento dos doentes e, principalmente, abandonar a família que está numa situação de desequilíbrio e sem nenhuma competência para lidar com os problemas desencadeados pelos transtornos mentais.

No dia marcado para a entrevista com R., agora um adulto, com a caderneta cheia de perguntas preparadas, percebo minha limitação diante do que virá, e tomo nota também desse pensamento, dessa imobilidade sentida quando não vivenciamos algo do outro. Resolvo deixar tudo em aberto, um porvir.

Chego ao local do nosso encontro, a mesma livraria de sempre, meu abrigo nesta cidade peculiar, São Paulo, e descobrirei, na nossa conversa, que também é o dele. R. gosta de ler, dirá, porque foi com a leitura que escapou da loucura. Ainda hoje é assim.

Pela foto do seu perfil no Facebook, reconheço R. sentado na mesa do canto, bem perto do pé de jabuticabeira que acolhe os clientes do café.

Como vai? Obrigada por vir.

Sento. Ele já tomou um café, e me explica que é sempre assim, antes cedo do que tarde, diz.

A caderneta, deixo na bolsa, mas logo a pego para ter um apoio, fingindo que escrevo aquilo que escuto dele, da sua história, mas é tudo ilusão: esta caderneta, a escrita, Foucault, por que eu o li mesmo? A verdade é que registro cada palavra através da sua emoção, enquanto ele refaz sua história comigo, na presença da minha escuta.

Diz que sua mãe sempre teve problemas psíquicos: depressão, raiva, manias, surtos.

– A gente aprende a conviver, sabe? O problema é que a loucura contagia a família. Acho que escapei – ele esboça um sorriso. Eu também.

Foi depois dos dez anos que R. realmente percebeu o estigma de ser filho de uma doente psiquiátrica. Na escola, qualquer coisa que fizesse, coisa de criança, já era motivo para ser taxado como um menino problemático, fruto da loucura da mãe.

O fruto da mãe.

Com a mãe ausente, R. teve que aprender a se virar. Assim, um chute ou soco também estava valendo, se fosse preciso, e sempre era, porque criança gosta de espezinhar o mais fraco. Ganhou fama de valentão e encrenqueiro, e seu pai sempre era chamado à escola, todos na diretoria, ouvindo da diretora como ele era agressivo, e ele sabendo da bronca que viria do pai generoso.

Seu celular toca. É o pai. Enquanto conversam, vou ao balcão e peço um café curto, mas não muito. Sempre erram na quantidade. O certo seria ¾ da xícara, mas, para variar, ele vem abaixo da metade dela. Um gole, apenas.

Ele desliga o celular, faz um gesto para que eu volte à mesa, diz: era meu pai. Ele sempre liga para saber de mim, dos netos, da Mila, e eu pergunto dele, da minha mãe, coisas de família.

– E sua mãe? – arrisco-me.

– Hoje, parece bem – diz ele. – Mas é um dia após o outro. Não tem jeito.

R. é casado com Mila há vinte anos. Têm dois filhos. Costumam viajar aos finais de semana para Ilhabela. R. e Mila formam um casal bem-sucedido econômica e afetivamente. Tudo vai bem, bem demais.

Conta-me que, por anos, durante a adolescência, teve medo de ficar louco também, perder o controle da mente num surto, como aqueles da sua mãe. Deu a volta por cima através de muita terapia, tentando buscar a tal da felicidade nas coisas pequenas da vida, nas amizades sinceras, com Mila e, finalmente, superou tudo quando o primeiro filho chegou.

– Sabe o que é o pior? O estigma. Para sempre será assim: de criança, desde a primeira briguinha, até adulto, quando você não aceitar algo, mesmo sendo imoral, o cara vai apontar o dedo para você, dizendo: filho de peixe, peixinho é, ou louco como a mãe. Sempre assim.

R. pede mais um café e desliga o celular. É o gesto evidente de alguém que quer falar.

– Está com pressa? Não? Ah, que bom. Tenho quarenta anos. Não sou mais nenhum moleque para alguém colocar o dedo na minha cara e falar que sou louco, entende? Hoje eu sei disso. Mas durante anos foi assim, e quase acreditei. Porque o negócio é o seguinte: você é uma criança, não entende quase nada da vida, mas percebe que algo não vai bem. Minha mãe, além da depressão – hoje eu sei o nome –, também tinha crises de agressividade e mania. Passava o dia limpando a casa, recolhendo migalhas no chão, sem deixar que eu e meu irmão brincássemos, pois sujaríamos a casa. Carinho? Nem pensar. Eu tinha sorte no dia em que ela não me batia. Tudo, tudo mesmo, era motivo para tomar um tapa, uma surra. Ninguém se tocava sobre a doença que, na minha adolescência, iria explodir. Uma bomba-relógio que a medicina tenta controlar com medicamentos, Lítium, Haldol, Frontal, Prozac, Rispiridona, Neuleptil, Rivotril, Anafranil… todos, todos eles, só servem para controlar a bomba, entende? Agora, na hora do surto… você tem ideia? Minha mãe teve vários surtos. Alguns, conseguimos controlar em casa mesmo. Claro que à base de remédios e idas e vindas a consultórios de psiquiatras. Mas nos surtos pesados, quando ela achava que a terra estava sendo invadida por extraterrestres, que eu era a reencarnação do diabo, e a vida dela e a minha corriam risco, ela era internada. Ajuda? Só se tiver grana. Essa é a verdade. Ainda mais naquela época. O pessoal demoniza os manicômios. Está certo, concordo. O doente tem que ter um tratamento digno, adequado, humano. Sou contra os manicômios. Mas é necessário, sem hipocrisia, a gente falar também sobre a carga que nós, os familiares, carregamos. Não é fácil. Meu pai tinha grana para internar minha mãe numa clínica boa, a melhor, eu acho. Mas e quando não se tem? A gente corre para onde? Porque, quando ela surtou e me encheu de porrada, um vizinho ouviu e chamou a polícia. Quem tem coragem de entregar a mãe para polícia? Eu disse que não era nada, eles queriam conversar comigo, mas eu fiquei quieto. Meu pai também ficou quieto. A família fica muda, entende? Eu não estou falando que uma pessoa com transtorno mental deva ficar internada a vida toda. Não, não é isso. Mas num surto, cara… não tem o que fazer. A pessoa sai de si, vira outra. A força é absurda! Ninguém consegue segurar. Tem horas que é preciso dopar o doente. Não tem como. Eu sei que é uma doença. Juro, entendo. Mas quem cuida dos familiares? Se meu pai não tivesse recursos financeiros para me colocar numa terapia, internar minha mãe, o que teria acontecido? O que poderíamos ter feito? Te falo uma coisa: a loucura numa família se espalha. Se você não tiver como se cuidar, corre o risco de ficar louco também. Então, ela era internada, e nós íamos visita-la. Meu pai ia todos os dias. Eu tinha dezesseis anos, e fugia um pouco do problema. Você já foi a uma clínica? É… só vai quem precisa mesmo. Pesado. Bem pesado. E a clínica era a melhor, hein? Mesmo assim você dará de cara com a loucura assim, na sua frente, e gente nova falando coisas absurdas, sem nenhuma noção da realidade, nossa, é aflitivo, triste. Aí, você sai da clínica, mas, se não tiver dinheiro para procurar um profissional, faz o que com suas emoções? Vai para uma igreja? Procura ajuda com Deus, é isso? Só rindo. Ninguém, ninguém mesmo, fala dos familiares dos doentes psíquicos. Meu pai, por exemplo, já é um senhor de 75 anos e cuida da minha mãe. Quem cuida dele? Eu sei que existem algumas políticas públicas para atender aos doentes. Acho que devem ter um programa para os familiares também. CAPS, certo? Agora me responda: para quem uma criança pode pedir ajuda quando sua mãe está em surto, no meio de um shopping, achando que a terra está sendo invadida por extraterrestres? O que a sociedade fará com esta criança, eu te pergunto?

R. liga o celular. Sei que nossa conversa acabou. A criança de que ele fala é ele também.

Na hora de nos despedirmos, R. pede: ah, não se esqueça de dizer que, na verdade, foi também o amor do meu pai por mim que me salvou.

Eu digo, escrevo.

 

 

Deborah Brum

Deborah Brum

Deborah é mãe, casada e feliz. Está viva quando escreve. Tem medo de não ser o que é, apesar de amar a ficção e achar que ela vale a pena. Vive com a incerteza plena que, paradoxalmente, traz a certeza mais dura: a morte. Sonha em publicar livros bacanas, ter uma família grande e morar em Cumuruxatiba, o seu lugar!