Infame

Inspire, Expire: o Ar que Não Respiramos

Meu filho de oito anos arregala os olhos: – Curso de respiração pra quê, se a gente já nasce respirando!

Por Ana Marta Cattani  |  19 de janeiro de 2018

Meu filho de oito anos arregala os olhos:

– Curso de respiração pra quê, se a gente já nasce respirando!

Diante do argumento irrespondível, fico sem ação. O curso, na verdade, é uma espécie de retiro na Serra da Mantiqueira, onde irei aprender técnicas respiratórias e de meditação. Pelo menos é o que disse minha amiga de infância, animada com a perspectiva de que finalmente irei cumprir minha promessa e aparecer – ela e o marido coordenam, há mais de vinte anos, uma escola especializada em respiração consciente. Éramos BFF. Lembro dela cuidando de mim, fazendo massagem para melhorar minha eterna dor de cabeça, enquanto Supertramp cantava The Logical Song na vitrola. Sempre atrasada, era a última a chegar em qualquer compromisso, e por isso apelidada por nós de Lastú – the last one. Mas as tais coisas da vida – seja lá o que for isso – acabaram por nos afastar.

Ela me manda e-mails com mil explicações, tudo muito organizado, transporte, alimentação e instruções sobre o que levar na mala. Hesito. Sempre achei uma chatice essa história de retiro, calmo demais pra mim. Ela me envia um zap: “Oi, só tem mais duas vagas. Mas se for esgotar te envio uma msg antes. Te aguardo. Bjs”. Nove dias longe de casa? Meu Deus, e as crianças? E tudo o que preciso resolver e organizar? Ela me manda mais um zap: “Oi, só temos mais uma vaga. Vc vai conseguir vir dessa vez? Bjs.” O curso é um bom pretexto para o reencontro. “Tô dentro, vou sim. Beijooo.” As crianças vão sobreviver, as providências terão de esperar. “Eba! Vai ser uma alegria te receber. Bem-vinda! Bjkas.” Esta foi a última mensagem que minha amiga de infância me enviou. Três dias antes de começar o curso, recebi um telefonema. Gabi tinha falecido.

Hoje estive com o viúvo da minha amiga. Eu sei, viúvo é uma palavra horrível. Talvez devesse dizer simplesmente “hoje estive com meu amigo Francisco”, mas ele não é meu amigo. Ele é o marido da minha amiga morta (“amiga morta” é ainda pior que “viúvo”, assim não dá). De jeans e camiseta, ele me recebe para uma sessão individual de respiração e meditação. Senta-se de pernas cruzadas e reclina a cabeça no espaldar da poltrona. Nenhuma cama de pregos à vista, ninguém em posição de lótus. Que alívio. O sotaque carioca não deixa dúvidas: ele não tem nada de indiano. Ele me explica que na psicologia oriental os traumas passados não importam. Como assim? Imagino Freud se remoendo no túmulo. Somos todos igualmente iluminados, igualmente inteligentes, diz. Por um instante, tento entender. O que será de nós se não pudermos culpar os pais por todas as desgraças da vida? Ele me conta que o segredo da respiração é deixar acontecer. Inspirar profundamente e deixar o ar escapar, sem fazer força. Se você sentir algo, não faça nada, apenas observe a si mesmo. Se você pensar em algo, deixe fluir o pensamento. Um exercício de não interferência. Penso imediatamente nas minhas infindáveis listas de coisas para resolver. Penso em quanta interferência é necessária para riscar algum item da lista. Deito no sofá e a voz dele me guia enquanto respiro por quarenta minutos seguidos. Só isso, respirar, parece simples. Sinto meu corpo relaxar cada vez mais, as almofadas se tornam líquidas e o corpo afunda. Meu peito se expande como se todo o ar do mundo não fosse suficiente. Não há anjos cantando, nem visões do além, só uma incrível sensação de bem-estar. Quando termina, noto que a dor de cabeça que me acompanhava há dias passou. Ele me pergunta como foi. Me sinto mais leve, muito mais relaxada, digo. Ah, e tive uma ideia para o meu próximo texto.

Você tem razão, meu filho, nós nascemos respirando. Pena que esquecemos disso tão rápido.

Ana Marta Cattani

 

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani

Ana Marta Cattani adora Snoopy, Borges, Drummond, mousse de chocolate e cheirinho de lavanda, necessariamente nessa ordem. É paulistana, mãe, esposa, advogada e apaixonada por escrever, não necessariamente nessa ordem.