– Alguém poderia me ajudar a tirar a minha blusa vermelha? – foi o pedido da senhora, em tom desesperador.
– Claro, Dona Carolina! – respondeu a nora.
A cor reflete o estado de espírito. A troca da roupa foi por uma blusa de cor preta.
Ele reclamava muito das dores no corpo. A doença já tinha avançado e se alastrado por todos os seus tecidos. Cada dia que se passava, era mais um dia de vida e também de resistência à morte. Em seu olhar já era percebido o cansaço em manter as funções vitais.
Foram nessas circunstâncias que ele se encontrava na véspera de Natal, um dia torrencialmente quente. Seu pleito, insistente, era por água gelada. Como acreditar que, naquele estágio de tamanha fraqueza em que se encontrava, o seu maior desejo era por água… e gelada? Era uma viagem perdida entregar-lhe água na temperatura ambiente.
A cena era de um patriarca sentado em seu trono: ele, sentado na poltrona de seu quarto, todo apoiado em almofadas e travesseiros. Seu corpo minguado estava debilitado demais para se manter equilibrado na poltrona. O ar presente no quarto era fúnebre. Era possível sentir ali o cheiro da morte, a rondar.
Entre os pedidos de água gelada daquele que estava prestes a partir, num ritual de despedida, a família aproveitou o momento para trazer à tona lembranças e destacar os eventos que foram importantes para ele ao longo de sua vida. Foi assim que seu filho mais velho sacou o celular do bolso e colocou para tocar o hino do Corinthians, o time do coração de ambos.
– Lembra, pai, do dia em que te levei para conhecer o novo estádio do Corinthians? – a resposta imediata foi um “sim”, com o movimento da cabeça. A alegria efêmera se instalava e veio um leve sorriso a estampar seu rosto pálido.
Todos os familiares estavam dentro do quarto; seus dois filhos, nora, netos e sua mulher. Esta última, a Dona Carolina, também já idosa, beijava-o na boca por sentir próximo o momento da despedida. Os encontros dos lábios dos dois foram intensos e lindos, sendo o único momento em que o filho mais velho se ausentou do aposento para chorar. E pensar que um casal que viveu junto por tantos anos estaria, naquele agora, à beira de uma separação ocasionada pela vida; seguramente um momento de sofrimento e perda. O maestro brasileiro dita o tom dessa tristeza melancólica por meio da música “Sem Você”:
“Sem você
Sem amor
É tudo sofrimento
Pois você
É o amor
(…)
E o mundo é triste
Sem você”
Tom Jobim
A ceia não tinha peru e tender como de costume. Foram as bruschettas que a princípio seriam servidas na entrada do jantar e que, em razão dos fatos circunstanciais, tornaram-se o prato principal. Todos estavam abatidos à mesa.
Entre uma conversa e outra, o filho mais novo sacou do bolso um baseado e o acendeu. O cigarro rodou entre todos os presentes. O clima ficou menos tenso e o silêncio foi interrompido pelas conversas que começaram a fluir. Veio, assim, mais uma vez, à tona as lembranças do velho que estava na poltrona a poucos metros de distância de lá.
Ali na mesa todos estavam juntos. Juntos. Juntos de verdade, na maneira mais plena da palavra. Como é difícil encarar a tristeza! O fumo foi essencial para amortizar a dor e o medo. O medo da morte, pois alguém ali estava próximo de morrer.
Já se passava da meia noite e aos poucos todos voltaram para o quarto do enfermo para lhe desejar Feliz Natal. Os gestos de amor, fraternidade e de muito carinho foram transbordados no pequeno ressinto. No fim das contas, o que salva a vida é o amor. É estar envolvido em relações amorosas que possam somar e tranquilizar os momentos de angústia e de sofrimento.
Exaustos emocionalmente, todos foram dormir. Era noite de Natal.
Em certo momento de inquietude e de intuição aflorada, o neto mais novo acordou para verificar o estado do seu avô, que estava deitado na cama. Mas ele não se mexia. A cena retratada era a do enfermo deitado na posição fetal, segurando o travesseiro, ao lado de sua mulher, de toda uma vida, em sono profundo. O doente partiu da forma mais poética que a morte pode se apresentar: atingiu o plano da travessia acompanhado por Morpheus e seus anjos.
Nota: a colagem ilustrativa foi feita logo após a morte de meu avô. Ela é repleta de significados e de sentimentos especiais.