Infame

A Morte de Meu Pai

"Antes de o meu pai ficar doente, ele dizia que não tinha medo de morrer, que seu corpo poderia parecer frágil, mas que seu espírito era forte. No entanto, durante conversas com os filhos sempre dizia que se um dia fosse parar no hospital e houvesse a necessidade de ser intubado que não deveríamos autorizar o procedimento, era demasiadamente agressivo. Mas nós autorizamos".

Por Maria Fernanda Ribeiro |  23 de dezembro de 2017

Se meu pai pudesse falar enquanto padecia em seu leito de morte, penso que teria dito: deixem-me partir. Ligado a instrumentos que prolongaram a sua existência é como se ele tivesse morrido duas vezes. A primeira foi quando entrou em coma após uma complicação oriunda de um AVC e passou pelos tratamentos hospitalares dos quais ele, como médico, sempre temeu. Intubação, traqueostomia, alimentação por sonda, períodos alternados de consciência com sonos profundos. A segunda foi quando seu coração parou de bater seis meses depois e fez-se necessário o enterro daquele corpo que de vida restava apenas um suspiro.

Um suspiro que me trazia pouca esperança, mas era capaz de alimentar o meu coração ao me proporcionar ainda poder sentir aquele corpo quente que aprisionava a sua alma. Ao visitá-lo no hospital aproveitava para colocar as minhas mãos na dele para guardar na memória aquela pele macia que tantos bebês segurou. Também encostava as minhas mãos no peito magro e estufado, que hoje ao meu tanto se assemelha, para eternizar o abraço que ele me dava quando eu chegava em casa vinda de alguma cidade que não era mais a dele.

Eu sabia que a morte viria, ela já estava na porta e observava todos os nossos movimentos não sei se com dó, desalento ou compaixão, e me aterrorizava pensar que eu ainda pudesse viver tantos anos sem meu pai e que as lembranças pudessem me escapar conforme eu vivesse mais um dia, e mais um, e mais um. Tinha medo que tudo se transformasse em um grande rabisco cinza, que as cores se esvaíssem pela palma da minha mão e ficassem enterradas no solo daquele cemitério.

Quando meu pai entrou em coma após a primeira cirurgia, eu não estava lá. Minha mãe ligou e disse “venha enquanto ainda seu pai respira.” Peguei um avião e doeu fisicamente a solidão daquele voo noturno com um estranho ao lado. Lágrimas escorreram em silêncio absoluto. E ali começou a minha trajetória para entender a morte. E toda busca constitui-se no silêncio. E nele, permaneço até hoje.

Durante o voo, lembrei-me do dia em que percebi que algo não ia bem com o meu pai quando ele foi me receber na rodoviária, um ano antes. Franzino, passos lentos e arrastados, olhar cansado, talvez melancólico. Vestia uma calça jeans preta, estava aquecido por uma jaqueta de frio marrom e o corpo frágil sumia dentro daquelas vestes. Para mim, o sinal estava dado e desde então os dias se passaram para mim esperando apenas a morte chegar.

Antes de o meu pai ficar doente, ele dizia que não tinha medo de morrer, que seu corpo poderia parecer frágil, mas que seu espírito era forte. No entanto, durante conversas com os filhos sempre dizia que se um dia fosse parar no hospital e houvesse a necessidade de ser intubado que não deveríamos autorizar o procedimento, era demasiadamente agressivo. Mas nós autorizamos. Nós fomos contra a vontade daquele homem que sabia o que queria e inconsciente já não podia mais escolher o próprio caminho. Depois da intervenção, entrei naquela sala de UTI, fui até o ouvido dele e pedi desculpas. Desculpa, pai, por não te deixar morrer.

Mas não houve equipamento suficiente para segurá-los em nossas mãos. Quando o coração dele parou de bater, minha mãe estava lá, mas dessa vez não permitiu que nenhuma interferência fosse realizada naquele corpo agonizante. Que a vida siga seu curso, ela disse.

Em novembro desse ano a morte do meu pai completou dois anos e a dor cedeu espaço para o amor. A saudade está sempre ali, mas não dilacera em preto e branco e sim batuca no peito em luzes coloridas de afeto. Hoje já sou capaz de ver fotos e ouvir o Trem das Onze do Adoniran Barbosa sem sentir nenhum amargor.

É como se meu pai estivesse vivo e onipresente, pois sou capaz de senti-lo por onde quer que eu vá. Tão vivo que consigo ouvir nitidamente o som da sua voz perguntando: tá tudo bem filha? Está sim, pai, já compreendi que na vida não há contrários, é tudo caminho. E além do mais, o pulso continua a pulsar por aqui, com o amor agitando o meu coração.

 

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda é jornalista e rodou um ano pela Amazônia para conhecer e compartilhar as histórias do povos da floresta. Nascida em Bauru, interior do estado de São Paulo, morava em São Paulo antes de iniciar a jornada floresta adentro. Agora mantém o blog Eu na Floresta no Estadão e tentar arrumar tempo para escrever um livro e está à procura de uma casa com quintal para ter sua própria horta e onde possa plantar os amigos, os livros e nada mais.