Infame

Sem Pensar: Relatos de um Surto Psicótico

"Pra parar com os rodeios, eu tive que ter um surto psicótico pra entender que é quando abrimos mão do controle e deixamos a expressão transbordar vindo de dentro, que a gente é a gente mesmo. Porque surto psicótico é um negócio que dá pra explicar, mas não dá muito pra entender".

Por Marina Keunecke |  20 de dezembro de 2017

De tempos em tempos eu começo uma busca meio obsessiva de ler conteúdos que não são abertamente conhecidos (ou talvez sejam, mas não entre os meus conhecidos). Aquele tipo de coisa que você precisa cavucar bastante. Ir atrás de alguém que recomenda alguém, explorando pra ver o que encontra eco em mim. Não sou uma pessoa tão aberta ao mundo. São quase 26 anos e ainda estou engatinhando em entender como é que a gente entra em contato com o mundo para além do sobreviver. Nessas explorações fico ávida pelo contato com as expressões de subjetividades alheias.

Sabe, tem aqueles textos que você lê porque precisa ficar com o pé no chão. Política, meio ambiente, direitos humanos… Esses me interessam. Me fazem querer mudar o mundo, me deixam incomodada e em constante reflexão. Tem também uns gifs, uns memes, umas coisinhas bobas de que a gente precisa pra conseguir um pouco mais de ar pra terminar o dia. Mas o que busco não é nem um e nem o outro. Procuro o limbo, aquilo que brota de dentro de nós e abarca os fatos, as fantasias, o subentendido, o nem imaginado, tudo que só nós, seres humanos podemos conectar com muita lógica maluca e criativa. Quando acho esses oásis no meio do deserto de informações é um momento de realização. Eu me encontro em imaginar que sei o que os outros são. Naqueles detalhes, numa palavra que quase nunca uso mas que é perfeita para o assunto. E não são superficialidades, porque são nessas sutilezas que a gente percebe onde estamos sendo inadequados demais. Eu reconheço a necessidade dos tapas na cara que a vida nos dá, mas me entendo mais quando esse outro que não sou eu fala um pouco sobre a sua dor, sobre suas particularidades, sobre aquilo de banal que o interessa.

Por muitas vezes tive a certeza de que o que podíamos oferecer de mais precioso ao mundo eram nossos pensamentos e opiniões mais bem fundamentados, com lógica, começo, meio e fim. Tudo muito explicado. Muito real. E aí acontece que de repente eu perdi totalmente essa certeza da realidade. Eu sou desse tipo de pessoa que pensa demais, que organiza o pensamento como se fosse planilha do excel. O tempo todo, sem conseguir dormir de tão tonta que fico com tanta organização. Ou era. Porque foi só cavucando em mim, à procura dessa subjetividade, da mesma forma que busco nos outros, que eu cheguei perto do cerne de ser quem eu sou.

Mas não foi bem uma exploração consciente, com GPS e programação. Pra parar com os rodeios, eu tive que ter um surto psicótico pra entender que é quando abrimos mão do controle e deixamos a expressão transbordar vindo de dentro, que a gente é a gente mesmo. Porque surto psicótico é um negócio que dá pra explicar, mas não dá muito pra entender. Se você quiser saber, é assim (pelo menos no meu caso): você vai ficando estressado, cansado, tudo vira uma grande tensão. Aí até pegar o metrô ou levantar da cadeira pra pegar um café vira um negócio complicado. Isso começa a atrapalhar o trabalho, você não vê mais muito motivo em sair de casa e encontrar as pessoas. Tá tudo no limite, com muita pressão. E aí não há corpo que aguente são. Essa tensão toda vai atrapalhando a forma como seus hormônios são liberados e cria uma bagunça geral. E tem uma lindeza, um balé que é como o nosso cérebro funciona. No meu cérebro, na apresentação de novembro passado a bailarina principal chamava dopamina. Um hormônio e neurotransmissor fofíssimo que é um dos responsáveis por você entender a realidade (no nível “Ah isso aqui que eu tô encostando é uma cadeira”). E quando essa lindeza aumenta demais no cérebro você perde a noção. Você sabe que a cadeira está ali, mas será? E tipo o meu corpo, meu pé devia estar ali embaixo, mas eu não tenho certeza que estou sentindo ele muito bem. As coisas ficam meio nebulosas. No estágio que eu cheguei eu até sabia o que estava rolando, mas precisava de ajuda pra me manter firme, pegar a rota certa pra melhorar e não aquela que ia me fazer virar estatística.

É bastante assustador, mas com muito cuidado e respeito a gente melhora. Só que quando você melhora e volta pra realidade, tudo já mudou. Por dentro você é uma floresta depois de ter passado fogo arrasando tudo. Todas as certezas, todos os pensamentos não servem mais. E é nesse momento, depois de um passeio por esse mundo irreal e por essa realidade bizarra que você entra em contato com aquilo que te mantém vivo. Brota uma criatividade, uma força que eu podia falar que vem de alguma divindade, mas é de dentro mesmo que vem. Do que não se explica. Daquele silêncio entre um pensamento e outro. Pra citar Lacan, vi que onde não penso, existo. E busco esse não pensar em todo lado.

Deixo então minha contribuição. Quem sabe outros se encontrem um pouco nessa minha expressão meio bagunçada.

Marina Keunecke

Marina Keunecke

Marina é feminista e bissexual. Até gosta de ir para o embate, mas confessa que deixa de lado discussões acaloradas para atuar na militância com amor e acolhimento. Graduanda em Publicidade que sempre se pergunta como sua timidez acabou levando-a para a área de comunicação. Depois de um episódio de surto psicótico e uma depressão, tenta aprender com suas próprias fragilidades como equilibrar bem-estar coletivo e individual em sua jornada.