Me peguei ali aterrorizada diante dela. Músculos contraídos. Estava morta, era irreversível. Era um corpo apenas. Estendido no chão do banheiro de minha própria casa.
E eu buscando, como quem pisa em ovos, estabelecer algum tipo de encadeamento racional lógico que me dissesse como lidar com aquilo.
Sabia que ela não voltaria. Mas o medo, como um fantasma, me rondava.
Aquela cena voltando à minha lembrança. Como um filme que eu acabara de assistir.
Ela, morta, bem à minha frente. Vertendo ainda fluidos viscerais pelas fendas do corpo dilacerado.
Tudo ali, em minha própria casa, lugar que eu julgava seguro.
Crescia a sensação de que eu seria, a qualquer instante, surpreendida pelo ataque do monstro da vingança. E me paralisava o pavor.
Sentia-me invadida, agredida.
Imaginava quanto ela teria se imiscuído em minha vida antes daquele dia em que eu a surpreendera. Teria roçado meus tecidos, lambido meus talheres, dormido em meu sofá?
– Parasita!
De que tanto meu ela teria usufruído em minha ausência …
Raiva. Era raiva, então, o que corria em minhas veias.
Aquela vadia desgraçada. Abandonada, eu sei, que fora por todos os seus… veio estar às minhas costas, veio ser às minhas custas. À toa na vida. Sem eira nem beira.
– Maldito seja o buraco que te pariu! Porque mãe, imagina… a tua teve doze ou treze, ou vinte ou mil inúteis iguais a ti…
Enquanto proferia em alta voz, e em vão, esses insultos desarrazoados, com os joelhos fincados em rejuntes incômodos de azulejos indiferentes, finalmente me dei conta de que que sentia nojo. Repugnância. Não por ela. Por mim mesma.
Me vi, de repente, avessa a tudo aquilo que eu julgava meu, a tudo aquilo que eu julgava eu. A tudo aquilo que eu julgava limpo. Àquele sentimentozinho medíocre de limpeza.
Aquilo me enjoou profundo. E foi, então, que desejei ser suja. Tão suja como ela. E deixei pender devagar meu corpo até tombar ao chão. Paralelamente me deixei deitar com ela, de onde a poderia olhar em linha reta.
Sentia-me exausta, microscópica, e falível.
Desejei-me capaz, por alguns minutos ao menos, de expor as minhas sobras, os meus restos. De espalhar meu lixo tão amarradinho em compartimentozinhos seguros. Desejei nadar em meu lixo, em minha própria lama. E quis gargalhar frouxo da minha imperfeição, da minha impermanência, das minhas inconsistências. Da ridícula voracidade patética do ego, devorando qual um verme, as nossas carnes de bicho. Quis vomitar. E depois arrebentar as grades que encarceram nas hipócritas vielas sociais, os nossos sangues de bicho, que transfiguram os nossos corpos de bicho, que exorcizam as nossas almas de bicho.
Tive certeza. Eu quisera matar.
E por fim, meio assim de súbito, me senti menos frágil, e menos vil.
E somente a certeza de tê-la matado, trouxe, enfim, um alívio.
– Barata filha da puta!