Em 2012, eu trabalhava em uma organização de Belo Horizonte que possuía atividades no Maranhão. Era uma ONG que executava projetos de comunicação e Direitos Humanos com foco nos Direitos Sexuais e Reprodutivos. Se não me engano, essa teria sido minha primeira de muitas viagens a esse estado, o Maranhão, que me pegou de jeito.
Chego ao hotel em São Luís. Deixo as minhas coisas e ligo a TV. Ponho num desses canais de notícias 24 horas. A manchete era no mínimo enigmática: “Menor mata adolescente”. Eu já tinha lá minhas inserções no campo da infância e fiquei me perguntando, de maneira retórica: mas quem é o “menor” e quem é o “adolescente”, se ambos os sujeitos se situam na mesma faixa etária? Porque a nomenclatura “menor” estaria ultrapassada, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente. “Menor” é um termo que se relaciona com o antigo e já caduco Código de Menores, que regulava a “situação irregular” de crianças e adolescentes em situação de rua, de vulnerabilidade social, de abandono.
Essa manchete me chama a atenção porque, no mês no qual completamos 69 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, vejo isso como uma afronta aos Direitos Humanos. E me chama a atenção o fato de que a mídia, a nossa massa de conglomerados midiáticos, é uma intensa criminalizadora e destruidora dos direitos humanos. Dos direitos como um todo, na verdade.
A mídia poderia exercer um papel de promoção de direitos para que pudéssemos construir uma sociedade justa, igualitária, democrática. Entretanto, saliento que, embora a mídia possa ter esse papel, ela acaba por reforçar uma noção individualista, preconceituosa e nada igualitária. A mídia não é um ente isolado da sociedade, sendo uma forte reprodutora dos processos de opressão e desigualdade que vivemos. Se falamos que no Brasil existe um racismo estruturante às relações, podemos então dizer que esse racismo aparece também nos conglomerados midiáticos.
Esse racismo aparece tanto a partir da constituição administrativa das empresas como no seu conteúdo. Temos, no Brasil, cerca de 10 famílias que comandam pelo menos três quartos dos meios de comunicação nacional. E são todas famílias ricas e brancas, integrantes de uma elite que não anseia por mudanças estruturais na sociedade. E isso acaba repercutindo no conteúdo próprio das programações, por exemplo, das emissoras televisivas. As novelas são um perfeito exemplo disso, pois até os anos 2000 você não via protagonistas negras/os na telinha. Quando um negro ou uma negra participavam do elenco eram em papéis subalternizados – sempre como motorista, empregada, faxineira; nunca como empresário, jornalista, médica, advogado.
A perpetuação da noção do negro como subalterno interfere diretamente na construção social acerca do negro, acerca da negra. Somado a isso, temos os programas sensacionalistas (também chamados de policialescos) que viralizam uma percepção social de que a nossa sociedade é violenta e é violenta porque existem certos tipos de pessoas que cometem certos tipos de crime e que nos atingiriam. Tentando ser menos prolixo: em tais programas, aparecem majoritariamente pessoas negras que cometeram algum delito. Repare: a maior parte dessas pessoas tem a pele escura, traços negroides, são oriundos de periferias urbanas. Dificilmente nesses programas você verá a cara do playboy branco e rico da Zona Sul que, embriagado em sua Mitsubishi, atropelou o moço que calmamente andava pela calçada à noite. A violência que a mídia aponta supostamente tem uma cor, que é negra. Mas ela não se arvora em debater, de maneira mais profunda, as reais motivações para que se chegue nesse limite de termos uma população negra marginalizada e, antes de ser “violenta”, que foi violada nos seus direitos.
O genocídio da população negra não se restringe às mortes violentas. Todo processo de aniquilação de identidade e de identificação desse povo, toda estigmatização, toda criminalização contribui fortemente para um destroçamento simbólico do povo preto. E nisso os grandes veículos de comunicação têm parte ao reforçar o racismo que nos estrutura enquanto sociedade. Programas como “Cidade Alerta”, “Balanço Geral” e o finado “Aqui Agora” são, ao mesmo tempo, reprodutores do preconceito racial do nosso país e perpetuadores desse racismo. Escracham na nossa cara o quanto aceitamos o fato de que algumas vidas são plenamente matáveis em detrimento de outras. E, dessa forma, estão fortemente contribuindo para o genocídio preto e, por conseguinte, para a destruição dos Direitos Humanos como projeto de sociedade.
Somente será possível caminharmos para o fim do genocídio quando primeiro pensarmos em acabar com esse tipo de programa. Não deverá ser a única ação, pois precisamos reforçar de maneira positiva a presença negra na mídia. Mas só de tirar do ar esses programas “espirra-sangue” já teremos caminhado um pequeno passo.