Infame

As Primeiras Vezes: Sensações de Descoberta

"A descoberta do caroço do abacate fez com que meu parceiro de cozinha (e tanto mais) pudesse degustar a guacamole de maneira não habitual e, assim, descobrir que poderia ir além: sentir o cheiro da fruta, saber o melhor ponto de amadurecimento para comer, ver o tamanho do caroço. Momentos simples como este é que renovam o olhar e permitem a descoberta do encantamento com o processo da natureza".

Por Sofia Lemos |  12 de dezembro de 2017

“A primeira reminiscência de sentido literário, que me acode, não é propriamente de um texto de literatura, em verso ou prosa, mas de um personagem de romance. Não do romance em si, mas da figura projetada por ele. Porque o texto não era bem texto, era uma coleção de legendas a uma coleção de figuras, na versão infantil do Robinson Crusoé, de Defoe, na revista O Tico-Tico, publicação da maior importância na formação intelectual das crianças do começo deste século. Creio que lhe devo minha primeira emoção literária, pois quando Robinson conseguiu se mandar da ilha, senti um nó na garganta: eu queria que ele continuasse lá o resto da vida, solitário e dominador…Emoção produzida por uma personagem literária, um mito.
– Mas você é o tipo do caramujo, puxa! Ainda fedelho, e já sonhava com ilhas desertas.

– Não era bem a solidão da ilha que me encantava no Robinson, era talvez, inconscientemente, a sugestão poética.” –   Carlos Drummond de Andrade, trecho do “Mal, Obrigado” – do livro Tempo Vida Poesia, ed. Record, 2008, 3ª edição.

 

Cena 1

Em tom eufórico, ela disse: “O dia está lindo, tia! Vamos passear no parque e tomar sorvete?”. Não hesitei. Aquele foi o melhor convite que eu poderia receber naquele momento. Trocamos de roupa, coloquei um sapato confortável e arrumei a mochila para que nada faltasse. Com tudo devidamente arrumado, estávamos prontas.

Nesses passeios com a minha sobrinha tive a oportunidade de resgatar a minha criança interna e trazer à tona lembranças da minha memória. Ensinar uma dança, mostrar a diferença entre o som de uma cigarra e o de um grilo e, ainda, poder compartilhar as minhas músicas favoritas… concedeu um novo, outro, sentido à vida. Ti bum, ti bum…. xalá,lá,lá…. Ti bum, ti bum… xalá,lá,lá…. cantávamos juntas. Nesse caminhar de trocas, mesclado com o resgate do passado, por obra do acaso passamos por debaixo de uma ponte e gritei: “Amelieeeeeeee… ie,ie,ie…!”. Ela arregalou os olhos e ficou paralisada. Foi nesse momento que ela descobriu a existência do eco. A empolgação daquela descoberta foi tamanha que ela não parava de gritar: “Tiaaaaaa….”. E o eco respondia: “aaaaaaaaa”.

Já tinha me esquecido do pequeno prazer que traz a descoberta do eco. Um som que se propaga pelo ar… que coisa maluca! Ainda mais para a mente de uma criança de quatro anos que está atenta e disposta a aprender. Quando a pequena Amelie perguntou para mim como se dava o efeito do eco pelo ar, respondi: “É a magia do universo”. Acho que um dia ela entenderá que essa resposta faz mais sentido que a de qualquer professor de física.

Cena 2:

Era sexta-feira à noite e combinamos de cozinhar algo. Que tal uma guacamole? “Delícia”, ele respondeu. Fomos ao mercado e providenciamos os ingredientes para o jantar à la mexicanos.

Descobrimos que nos momentos mais incríveis em que passamos juntos estamos, por muitas vezes, na cozinha. Experimentando sabores novos, reconhecendo os cheiros dos alimentos e percebendo as inéditas texturas dos legumes. Há coisa melhor na vida que poder cozinhar com amor – já dizia, em tom sertanejo, o antigo comercial de um tempero famoso?

É nessa vibe de descobertas que resolvemos fazer a guacamole. E com chips de batata doce!

Iniciei cortando a cebola roxa e os tomates. Ele espremeu o limão. Logo depois, coube a ele pegar o abacate. Ao que disse: “Como eu corto isso aqui?”.

Peguei uma faca e o cortei – claro, o abacate, não meu amor – pela lateral, para desviar do grande caroço. Mostrei como seria o procedimento e o deixei à vontade para que pudesse finalizar o corte. Após ter passado a faca por toda circunferência do abacate, ele abriu a fruta. Nisso, as metades se sobressaíram em cada uma das mãos; mas somente numa estava o grande caroço.

Seus olhos arregalados estavam firmes na metade que continha o caroço. Percebi, naqueles gestos singelos, que eu estava diante de um momento inédito. Foi quando, como se notasse minha olhada curiosa, ele emendou: “Nunca tinha visto a semente do abacate”.

A oportunidade de presenciar o primeiro momento em que alguém vê e sente o peso e o tamanho do caroço do abacate se transformou num algo mágico. “Há tantas coisas na vida que consumimos, sem saber a real origem dessas coisas”, refleti.

Esse tipo de pensamento foi muito bem explorado no filme “Capitão Fantástico”, aquele cuja cena mais emblemática (no meu ver) é a na qual todos os familiares estão na mesa de jantar e os primos “da cidade” externam o não conhecimento da origem do frango que está sendo servido. O total desconhecimento fez com que os primos “do mato”, experimentados na natureza, a par de processos que envolvem abacates e frangos, se espantassem com os primos “da cidade”.

O mais comum nos dias de hoje, diante da dinâmica do mundo, do tempo escasso e da urgência da entrega, é que as pessoas encarem com descaso a procedência de dado alimento, ou o não conhecimento da, por exemplo, melhor época para a coleta daquela fruta, verdura ou legume, depois presente na mesa.

A descoberta do caroço do abacate fez com que meu parceiro de cozinha (e tanto mais) pudesse degustar a guacamole de maneira não habitual e, assim, descobrir que poderia ir além: sentir o cheiro da fruta, saber o melhor ponto de amadurecimento para comer, ver o tamanho do caroço. Momentos simples como este é que renovam o olhar e permitem a descoberta do encantamento com o processo da natureza; saber que para cada alimento tem o mês ideal para semear, regar e colher, e se distanciar da ideia que você poderá encontrar o ano inteiro o abacate no prato do restaurante.

Cena 3

Sou formada em direito e exerci por anos o lavoro de advogada. Lembro-me da felicidade em ter em mãos a carteira da OAB e da possibilidade de poder mergulhar na profissão almejada. De uns tempos pra cá, deixei de lado a carreira advocatícia e resolvi permear os caminhos das artes plásticas.

Confesso que a primeira vez em que entreguei a alguém o meu mais novo cartão de visita sem o número da OAB, com somente os dados do meu portfólio artístico, foi de uma felicidade sem tamanho. Foi neste momento que me considerei artista e descobri um novo prazer da vida. A possibilidade de se multiplicar!

Sofia Lemos

Sofia Lemos

Sofia Lemos é brasileira e vive em São Paulo. Após ter exercido a profissão de advogada por anos, resolveu se dedicar às artes, principalmente à técnica da colagem. Sua trajetória artística foi iniciada em agosto/2016, quando se inscreveu na Oficina “Caderno de Recortes”, facilitada pelo artista Lourenço Mutarelli, no Sesc Pompéia – São Paulo. Foi a partir dessa oficina que a colagem começou a fazer parte da vida da artista. Sua produção artística é múltipla, atuando na elaboração de colagens em quadros, capa de livros e ainda, na realização de oficinas de criatividade. Já realizou exposições em São Paulo e em Nova York.