A época pré-digital ainda me encanta. As experiências eram mais concretas, não apenas algoritmos abstratos. As coisas eram mais difíceis de circular, principalmente informação. E a indisponibilidade dava uma aura mais gostosa para o momento. A aura de precisar estar presente em um museu para ver uma obra, de conhecer alguém para saber de seu cotidiano. Lembro que antigamente as pessoas traziam de viagem presentes que incluíam comidas. Chocolates, vinhos, doces, frutas, queijos, azeites. Era custoso ter acesso àquelas delícias que você só encontrava num determinado lugar. Não havia tanta reprodução, tanta disseminação. Hoje, temos os melhores espécimes na esquina de casa, seja da Bélgica, Itália, Japão. Não precisamos mais esperar um parente ou amigo vir de Portugal com aquele vinhozinho. Também não temos frutas da estação ou de um lugar específico. Tudo dá o ano todo, é vendido em todo lugar, só não com o mesmo sabor.
E não só as coisas, mas também os lugares. Antes era muito mais comum a surpresa de desbravar algo inédito, ao contrário de hoje que já vamos sabendo onde ir, por onde andar, o que comer. Todo o roteiro sobre o que ver já foi visto em fotos e vídeos. A reprodução já se apropriou da experiência. Temos guias e mais guias, perfis de redes sociais, aplicativos e uma gama de coisas que vão balizar nossa ida onde pessoas já foram. Não são um mapa, são um trilho. E com tantas coisas no checklist, não é de se admirar que as pessoas precisem “descansar das férias” depois de tantas caminhadas a toque de caixa para visitar todos os “points of interest” de onde estiveram.
Eu gosto de viagens sem roteiro. De aproveitar a ida e de chegar e ver o que acontece. De me divertir com pouco, nas coisas simples, conhecer as pessoas na interação, no contato, na conexão. Não a conexão que temos hoje, pelo metal, fibra óptica ou até wifi. Gosto de descobrir o que os “nativos” fazem longe das atividades para os turistas.
Walter Benjamin, um de meus autores favoritos, em uma de suas brilhantes reflexões diz que “o desejo realizado é o coroamento da experiência”. O desejo, aqui, é aquele feito bem cedo, e adiado para longe no tempo. É aquilo que almejamos sem contornos muito definidos, e demoramos inclusive para entender o que é. A metáfora da estrela cadente como desejo que será realizado é justamente por ela cintilar longe no infinito, e numa troca entre tempo e espaço, ela representa, ao surgir subitamente, todas as experiências que tivemos até a realização. Diferente da bolinha de marfim na roleta, com a qual apostamos, ávidos por ganhar, e ignoramos a experiência em nome do resultado.
E mesmo quando se ganha, a sensação é diferente. Quando vemos a estrela correr pelo céu, é inesperado, nos satisfazemos com uma falta que nem tínhamos direito. Somos arrebatados. Quando a bolinha cai na casa escolhida, é só o cumprimento de uma expectativa. Vejo as viagens de hoje como bolas na roleta. Em que se planejam todos os detalhes, em que se quer ver presencialmente aquilo já conhecido por fotos. E mais, muitas vezes a ação se resume apenas em tirar mais fotos a serem postadas.
Tento me manter do outro lado, o da descoberta. De ir rumo a um desconhecido e deixar que ele se revele. Infelizmente eu nasci já no fim da era pré-digital, mas por sorte consegui aproveitar um pouco disso na infância. Meu pai, caminhoneiro, me levava muitas vezes em suas viagens. Com ele conheci praticamente todo o Brasil, de norte a sul. Até meados de noventa os celulares não estavam por aí, a internet era ancorada por fios. O que eu carregava eram gibis que comprava pelas cidades em que passava e um mapa de estradas, todo amassado, em que eu entendia num plano maior aquilo que eu via passar pela janela do caminhão. Descobria muitas coisas já dentro da própria experiência, sem ter uma previsão do que encontraria. Como criança, muitas coisas simples ganhavam magnitude: como o sol se pondo mais tarde no Amazonas, enquanto o relógio marcava 20h. Ou a passagem por Palmas, quando era um misto de concreto e lama, capital de um Estado que não existia em meu mapa. O leite de búfalas saindo quente nos baldes na divisa com a Argentina, o ar pesado da primeira visita a São Paulo, o relevo plano do centro do país ou as estradas retas do Nordeste subindo e descendo, em que eu via um horizonte distante que deliciava meus olhos mineiros acostumados com morros e vales.
Mas não é preciso ser criança para se maravilhar e desbravar as coisas do mundo. Não precisamos ser crianças para reinventarmos algumas rodas e redescobrir coisas que já estão catalogadas, mapeadas, ranqueadas, fotografadas, revisadas, etc. É uma questão de desejar se abrir para o desconhecido e não importar o sistema de metas para a vida pessoal. A disseminação de coisas e informações que temos hoje logicamente tem seu lado positivo. Mas esse é um texto nostálgico, de um tempo menos globalizado e mais analógico. Um tempo em que a experiência tendia a acontecer no presente, sem agendamento prévio. Queria um pouco mais de tempo nessa época. Hoje, por mais que eu tente, nem sempre consigo me sentir desbravador como em meus primeiros anos.