Infame

Meu Computador me Contou que Você é Gay

"Redes neurais avançadas são mais efetivas do que humanos em detectar orientação sexual a partir de imagens faciais. Essa é a conclusão e o título de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford sobre um software que mapeia fotos de rostos em busca de traços homossexuais - e acerta com precisão de até 90% dos casos em homens e até 80% em mulheres (contra cerca de 55% nas análises humanas)".

Por Letícia Bahia |  28 de novembro de 2017

Redes neurais avançadas são mais efetivas do que humanos em detectar orientação sexual a partir de imagens faciais. Essa é a conclusão e o título de um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Stanford sobre um software que mapeia fotos de rostos em busca de traços homossexuais – e acerta com precisão de até 90% dos casos em homens e até 80% em mulheres (contra cerca de 55% nas análises humanas).

Não há surpresa em se constatar traços anatômicos comuns entre pessoas com algum comportamento comum, sobretudo quando este comportamento é segregado. O preconceito acaba criando nichos de convivência onde predomina um código específico, que pode ir da alimentação à linguagem. Assim, talvez um software possa distinguir com certa precisão paulistanos de cariocas, pois é de se supor que os segundos sejam, em média, mais bronzeados e, quem sabe, os primeiros tenham mais olheiras. A questão é o que faremos com isso.

Não se deve impedir a publicação de estudos como esse por conta de suas implicações. Atentos aos fins segregacionista e essencialistas que a ferramenta pode ter, a dupla de pesquisadores responsável pelo estudo preferiu contemplar esse debate no estudo a simplesmente deixar de publicar os resultados. A ferramenta está longe de ser tecnicamente inovadora, e seria questão de tempo até alguém chegar aos mesmos resultados – possivelmente analisados e utilizados com as finalidades que tememos. “Dado que companhias e governos têm cada vez mais se utilizado de visão algorítmica computacional para detectar traços íntimos das pessoas, nossas descobertas expõem uma ameaça à privacidade e à segurança de homens e mulheres gays”. Expõem mas não inventam, e na medida em que expõem, podem nos ajudar a prevenir certos usos desse tipo de ferramenta.

Mas o que podemos (se é que podemos) extrair de positivo dessa pesquisa, além de simplesmente remediar o evidente mal que podem causar? Há quem argumente que uma origem hormonal para a orientação sexual (teoria apontada pelo estudo como consistente com seus resultados) reforçaria a tese de que a homossexualidade é um comportamento natural como tantos outros. A mim me ocorre mais a possibilidade de uso em processos seletivos e trollagem nas redes sociais. Acho que não estou sozinha em meu desejo secreto de que o software identifique Malafaias e Felicianos como rostos gays.

Há, contudo, uma discussão muito mais relevante – no sentido de que pode ajudar na desconstrução de preconceitos – e que frequentemente passa longe desse tipo de estudo, simplesmente porque costuma se dar no âmbito das ciências humanas, usualmente estrangeiras para pesquisadores que constroem softwares e inventam inteligências. Trata-se de pensar orientação sexual como algo não dado, não binário, não universal. Como definimos orientações sexuais? Apenas a partir do desejo? Sentir excitação diante de um filme é o bastante, ou precisamos do ato consumado para entender que alguém é gay? Até que idade é possível dizer que a pessoa “está apenas experimentando”? Existe uma escala em que alguém é mais homossexual do que outra pessoa ou ser gay é uma pergunta que só pode ser respondida com um sim ou não? Quantas experiências sexuais são necessárias para dizermos que alguém é gay? A condição é fixa e imutável ou pensamos a orientação sexual como um estar mais do que um ser?

Sou um exemplo de alguém que se enquadraria nos parâmetros de homossexualidade de muita gente a partir dessas perguntas – apesar de eu ser casada com um homem e nunca ter sido identificada, por mim ou por outrem, como lésbica ou mesmo bissexual. Em outras palavras: tenho um rosto hetero, mas para muitos sou gay.

É justamente pela ausência de consenso sobre as perguntas acimas que somos levados a uma conclusão irrefutável: o  conceito de homossexualidade é fluido (e o mesmo vale para outras orientações afetivo-sexuais). Neste estudo, foi utilizado como critério a autodeclaração em redes sociais. É um critério fraco, pois faz parecer homogêneo aquilo que é plural. Entre os homens autodeclarados gays, por exemplo, é possível que encontremos homens que nunca estiveram com outro homem, mas sentem tesão em experimentar o flerte com alguém do mesmo gênero. Este homem é gay? As definições vai ficando mais amebóides a cada exemplo, e isso porque nem colocamos a transexualidade nessa conta.

Assim, quando um software identificar um rosto como um rosto gay, isso precisa ser entendido não como uma resposta, mas como um dado que é irrelevante sem que sobre ele se sobreponham outras perguntas. Homossexualidade, heterossexualidade, bissexualidade e outras orientações sexuais têm definições plurais, derivadas de vivências plurais. Essa compreensão é o que sustenta a bandeira da diversidade, da qual  inteligências artificiais jamais poderão dar conta.

Letícia Bahia

Letícia Bahia

A formação em Psicologia rendeu a Letícia Bahia o hábito de cavucar as ideias para além de maniqueísmos (efeito colateral: ruminação mental). A mãe professora teve a controversa ideia de ensinar-lhe as palavras antes que entrasse na escola. Desde então, escreve, sobretudo para transformar opiniões (inclusive as suas). Largou o consultório para virar Diretora Institucional da ONG AzMina. É obcecada por orquídeas (mas desdenha as de supermercado) e felinos (tem 5 rabiscados no corpo e uma dormindo na sala).