Infame

Às Vésperas de Mim: “A Saudade é o Fardo de Navegar”.

"Sentada na janela dos meus anos, percorro as penumbras emudecidas dos meus eus transeuntes. Todos os seres que me habitam pensaram em uma história completamente diferente para trilhar. No entanto, a reflexão final carrega a obviedade que tinge o brilhantismo do cinema francês: nada é da forma que imaginei".

Por Mariana Portela |  26 de novembro de 2017

“Estamos tão ligados aos lugares que nos parece mais fácil deixar a nós mesmos do que a eles”. Marguerite Yourcenar

Sentada na janela dos meus anos, percorro as penumbras emudecidas dos meus eus transeuntes. Todos os seres que me habitam pensaram em uma história completamente diferente para trilhar. No entanto, a reflexão final carrega a obviedade que tinge o brilhantismo do cinema francês: nada é da forma que imaginei. Talvez seja essa a melhor sensação da vida: saber que os nossos rios correm apesar de nós. O que nos resta é cuidar para que as águas permaneçam límpidas. Imprescindível é absorver a celeridade nas correntezas. E meditar em todas as calmarias.

Desde pequena, os lugares que escolhi para as comemorações entranhadas das mudanças quase nunca foram planejados. À reminiscência primeira, deixo o devaneio tomar o mínimo pedaço de chão, abençoado por lençóis brancos e sonhos pueris. O carpete castanho do quarto vivia seus momentos de glória. Quantos reis e dragões estavam à minha espera, nas proibidas madrugadas da infância!

Como se sucumbisse à eternidade das marcas sanguíneas no tecido, já não o revejo como vereda inquieta. Absorvo até mesmo os interlúdios como parte da orquestra que vem me construindo ao longo dessa existência.

Na jornada inesperada dos meus aposentos, permito-me acelerar a adolescência, com suas lágrimas descabidas e os tolos desalentos. Não por negligência ou vergonha. Mas porque gosto das ampulhetas preenchidas: ora no lembrar menino, ora na quimérica velhice em completude.

Quantas vezes pensei: serei eu o incômodo fantasma que abraça os baús empoeirados, numa casa cujos donos morreram há trezentos anos? Passaram-me as chaves, enclausuraram-me dentro dos meus próprios dilúvios? Não. Eu os fui, legitimamente, um a um. Sonho a sonho. Com o pavor míope de quem vê o tempo a furtar os detalhes.

Todavia, somente às margens do Tejo, entendi. Descobrir a concha ontológica em cada vã moradia. Os mares obrigam a alma a experimentar o desassossego. Só quem enxerga o infinito é capaz de nomear a saudade. Quem nunca parte não se estilhaça na cósmica aventura do desconhecer.

Acenos à beira do cais me visitam com seus lenços e prantos. Tentam seduzir-me com promessas de estabilidade. Marinheira que sou, embalo-me com vozes de sereia, tendo só a infinitude oceânica nos olhos.

E vou. Atônita, sempre. Febril e trovejante por medo desses escuros abissais. Contudo, foram eles que me prepararam para o resignar das novidades impensadas. Eu vou, inebriada pelas naus que me embarcam sem que seja tomada pela racionalidade assassina.

Afinal, toda terra é digna de colheita. Com canções arquetípicas e coragens guardadas, neutralizo as águas tempestivas. Às vésperas de mim, vejo a sincrônica encruzilhada dos amanhãs. Cheia de saudade das minhas casas primeiras, das sensações recônditas, dos sonhos imaculados. Mas a saudade é o fardo de navegar.

Mariana Portela

Mariana Portela

Mariana Portela é psicóloga de formação. No entanto, sempre soube que a literatura dominava suas mãos e seus abismos. Cresceu rodeada por livros e paisagens de biblioteca. Foi estudar Comunicação em Lisboa. Descobriu que os olhos finalmente compreendiam a saudade, marejados pelo Tejo. Já participou de diversas coletâneas literárias. Sonha que um dia poderá sobreviver às custas de suas próprias palavras… Afinal, viver é fictício.