Infame

O Livro, o Tempo e Eu: Aquela Leitora de 15 Anos Atrás Ainda Sou Eu?

"Semana passada peguei um livro para reler. Fazia tanto tempo da minha primeira leitura que até duvidava dela. Folheei as páginas, grifadas, anotadas, rabiscadas, no que eu não podia deixar de reconhecer como minha letra".

Por Natalia Timerman |  24 de novembro de 2017

Semana passada peguei um livro para reler. Fazia tanto tempo da minha primeira leitura que até duvidava dela. Folheei as páginas, grifadas, anotadas, rabiscadas, no que eu não podia deixar de reconhecer como minha letra. Eu já havia, inegavelmente, passado por ali, e não só isso: havia me emocionado e pensado a respeito daquelas linhas. Lembrava muito vagamente do livro – era feito de três partes, com três protagonistas diferentes. Nada mais que isso.

Na segunda página de Tu não te moves de ti, como é meu costume até hoje, leio: Natalia Timerman, 2002. O meu nome. Aquela que assinou há 15 anos ainda sou eu?

A última vez que meus olhos percorreram aquelas páginas, eu era uma estudante de medicina que matava aula pra ir ao Espaço Unibanco (só havia o Augusta, quem sabe também o Frei Caneca, e ainda era Unibanco), onde provavelmente, sentada nas mesinhas do café (que ainda ficava do lado esquerdo, onde hoje é a livraria), eu havia lido aquele mesmo livro. Me imaginei diante de uma xícara quase vazia, as pernas cruzadas na cadeira da frente, mirando, entre uma e outra página, as pessoas que chegavam ao cinema, como se estivesse sempre à espera de alguém.

Semana passada, com o livro nas mãos, pensei no que me levara a lê-lo há tantos anos, e não soube me dizer. Pensei nos quinze anos entre hoje e a longínqua primeira leitura: o fim da faculdade, morar sozinha, sempre querer ter morado fora e nunca ter saído de São Paulo; dois casamentos, dois filhos, e outra casa, em cujo sofá, sentada agora, eu me surpreendia com, apesar de tanta coisa ter mudado, eu continuar, sim, sendo a mesma pessoa. As mesmas angústias vestidas de outras roupas – eu provavelmente grifaria as mesmas coisas se pegasse, hoje, aquele livro ainda em branco. Mas como eu, depois de tudo ter mudado à minha volta, ainda era o que continuo chamando de eu?

Não sei. Mas Natalia continua sendo Natalia, mesmo com outra rotina, a vida diferente, o corpo mais velho e seguindo outra proporção. E tudo isso só pode ser distinto porque continuo sendo eu: só através do que permanece é possível perceber o que mudou. Parece que somos, a cada vez e sempre, a constante através da qual o tempo pode passar e se fazer sentir. Mesmo que tudo mude; as mudanças sendo efeito da passagem do tempo, não da nossa posse sobre a nossa vida.

Me vi, o livro na mão, o barulho dos pássaros pela janela da casa nova, por um instante como o ponto de convergência de toda aquela trajetória, a minha. E o que somos a cada momento mais que essa convergência? Talvez por isso, pensei, descruzando as pernas no sofá e tomando um gole do café que já esfriava, seja possível se assustar com o tempo que passa. O que somos pode mudar completamente (depositei de novo a xícara no pires), mas quem fomos é sempre igual a quem nos tornamos.[1]

Virei a página e comecei a ler, de novo, do começo, aquele livro. Até o fim.

[1] A diferença entre o que e quem somos tomo emprestada de Hannah Arendt, num trecho de A condição humana (Forense Universitária, 2007, p. 254-255) sobre o amor: “O perdão e a relação que ele estabelece constituem sempre assunto eminentemente pessoal (embora não necessariamente individual e privado), no qual o que foi feito é perdoado com relação a quem o fez. (…) Pois o amor, embora seja uma das mais raras ocorrências da vida humana, possui, de fato, inigualável poder de auto-revelação e inigualável clareza de perceber o quem, precisamente por não cuidar – de maneira quase alheia a este mundo – de o que a pessoa amada é, com suas qualidades e imperfeições, suas realizações, defeitos e transgressões.”

Natalia Timerman

Natalia Timerman

Natalia Timerman foi uma criança que disse à bibliotecária da escola querer ler todos os livros do mundo. Na mesma época, aos adultos que lhe perguntavam o que seria quando crescesse, respondia, sem hesitar, que escritora. Virou médica, virou psiquiatra, virou mestre em psicologia. Virou ela, adulta; mas ainda quer ler todos os livros do mundo. Sofre com essa e outras impossibilidades, e ainda jura que vira escritora.