Essa pergunta pode causar estranhamento num primeiro momento. A relação entre ciência e fé nem sempre é clara, principalmente quando são raras as ocasiões em que elas não são colocadas como opostas. Afinal, ciência é feita de fatos, não se trata de crer, certo?… Eu não bateria o martelo assim tão rápido.
Quando vejo afirmações como “a ciência comprova que” ou que tal coisa é “comprovada cientificamente” chego a ter arrepios, pois geralmente essas expressões estão presentes em contextos que buscam legitimação ideológica se escorando num status moderno de cientificismo. Sempre que vejo notícias sobre “descobertas científicas” fico com um pé atrás, e se me interesso pelo tema, vou atrás da pesquisa para saber como ela foi desenvolvida, se seu método foi minimamente coerente. Há algum tempo, o que a ciência dizia era incontestável.
Acontece que os cientistas são humanos, dotados de histórias e subjetividades que impossibilitam uma suposta neutralidade, são passíveis de erro e precisam de financiamento para seus trabalhos. Esse dinheiro que paga bolsas, salários, viagens e equipamentos caríssimos vem de governos ou empresas privadas, e só será fornecido se o estudo for do interesse de quem pode bancar.
Principalmente a partir da década de 60, com as críticas de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend, e os Estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade, que ganharam força na década de 80, a visão ingênua de que a ciência produzia verdades absolutas foi se modificando. O desenvolvimento científico dependia tanto de fatores pessoais, políticos e econômicos quanto de seus métodos. Determinado paradigma era mais aceito não porque era mais correto que os outros, e a escolha entre uma teoria ou outra não é de fato racional como os cientistas gostariam de acreditar. E aqui eu retomo o fato da fé na ciência.
Em nossas vidas jamais tivemos contato direto com a realidade. Todas as nossas relações com o mundo são mediadas pela linguagem, pelo pensamento, por nossos sentidos e a pela forma como nossos cérebros foram programados. O que temos acesso é a uma simulação do mundo criada por nossas mentes, por mais concreto que algo possa parecer. Dadas essas circunstâncias, de um real inacessível, o que nos resta é “crer” na realidade. E a ciência, como construtora de conhecimento e verdades, realizada por cientistas humanos, só pode nos oferecer uma crença de que o que ela afirma é correto. Além do mais, com toda a complexificação que temos hoje, como poderia um cidadão comum contestar adequadamente os resultados de uma pesquisa?
O “autoritarismo” científico, que determinava as regras da realidade, ditava modos de vida e sentenciava o que era “irreal” à exclusão, aos poucos foi sendo desbancado. As pessoas já não esperam verdades científicas definitivas ou absolutas, não são mais ingênuas de acreditar em tudo o que dizem os cientistas. Contudo, hoje temos uma nova ingenuidade: a dúvida absoluta.
Quando falta confiança nos fatos, sobram convicções. Como consequência disso estamos entrando na “era da pós-verdade”, vendo “fatos alternativos” se disseminando em nosso cotidiano. As pessoas não se dão ao trabalho de checar informações, de ver se algo realmente ocorreu, ou se ocorreu de forma diferente. E por mais que dados sejam apresentados por especialistas, elas preferem continuar acreditando no que lhes é mais conveniente.
Um grande exemplo disso é a questão do aquecimento global, em que há um consenso por parte da comunidade científica de que ele é amplamente influenciado por nós, humanos. Contudo, o pequeno número de pesquisas financiadas por empresas do ramo petrolífero e campanhas de desinformação colocam em que cheque um fato verificado e demonstrado.
Vemos isso a todo momento, políticos aumentando velocidades em marginais apesar de dados e estudos sobre vítimas de acidente, ou governos defendendo a reforma de uma previdência que a sua própria CPI mostrou não ser deficitária. A lábia tem vencido a ciência, e o que vemos hoje são políticos, jornalistas, “intelectuais” e usuários de redes sociais disseminando a desconfiança generalizada. Por conta de algumas maçãs podres e esse circo midiático vamos perdendo a crença nas instituições, desacreditamos na política, na religião, na justiça, na ciência. Esse é um contexto perigoso, no qual aquele que gritar mais alto e for mais carismático ganhará status de verdadeiro. Qualquer um se torna “especialista” em ciência política ou “crítico de arte” sem ter a menor ideia do que diz, mas sua voz é ouvida pelo megafone das redes sociais.
Precisamos recuperar nossa fé na ciência, que pode não determinar o que é verdadeiro, mas pode mostrar o que é falso. Há métodos rigorosos e fatos científicos sólidos que são muito mais que opiniões ou convicções. Ela consegue medir a realidade objetiva de uma forma que nossos sentidos jamais conseguiriam. O modus operandi da ciência, de produzir verdades discutíveis, é a fragilidade explorada por um novo tipo de ideologia, a da mentira cínica.
Além disso, precisamos manter a confiança na justiça, nem todos os juízes são comprados. Precisamos manter a confiança na política, nem todos os políticos são corruptos. Precisamos manter a confiança na religião, nem todos os líderes religiosos são aproveitadores. Precisamos evitar as duas ingenuidades: a de acreditar em tudo, e a de não acreditar em nada. Quem sai ganhando com essas suspeitas e desânimo constantes? A história está repleta de exemplos como o nazismo, a “guerra ao terror”, ditaduras e políticas de “segurança” orquestrados por aqueles que surgem como heróis diferentões e radicais para responder aos apelos de massas descrentes com medo do caos.