Infame

No Dia da Consciência Negra, uma Conversa sobre Allan Kardec e Racismo Estrutural

"Teria o Espiritismo contribuído para a eugenia brasileira? É uma pergunta. E, ao mesmo tempo, uma provocação".

Por Bruno Vieira |  20 de novembro de 2017

Teria o Espiritismo contribuído para a eugenia brasileira?

É uma pergunta. E, ao mesmo tempo, uma provocação.

Sempre fui uma pessoa, digamos, espiritualizada. Não sou de seguir religiões, mas cumpro alguns ritos – às vezes vou à missa, tomo um passe espírita, vou à umbanda conversar com uma entidade e por aí vai. Teve uma época na minha vida que eu fui mais próximo ao espiritismo, costumeiramente chamado de Kardecismo por causa do seu fundador, Allan Kardec.

É uma das mais importantes religiões no Brasil, ao lado do catolicismo, do protestantismo e da umbanda. No Brasil, o Kardecismo se espalhou de maneira muito intensa, fazendo com que o país fosse proclamado “pátria do Espiritismo”, um país cujo terreno seria fecundo para a prática e para o desenvolvimento dessa religião. Já algumas vezes me peguei perguntando o porquê disso: Por que em outras regiões do mundo o Espiritismo não se desenvolveu tanto quanto aqui?

Numa das minhas fases religiosas, fui frequentador de casas espíritas em Belo Horizonte. Cheguei até a dar uma minipalestra numa delas, sobre um tema que estudei com certo afinco. O Espiritismo é isso: uma religião / uma doutrina que valoriza os escritos, o estudo. E eu que sempre fui uma pessoa que gostava de estudar me vi bem nessa situação. O estudo confere o poder, inclusive, de se refletir sobre práticas, comportamentos e visões consolidadas.

Comecei, tem pouco tempo, a me conectar de maneira mais forte com os debates sobre raça e sociedade. A despeito de eu ser negro, somente recentemente venho me tornando negro. E um vídeo do Ad Júnior me sacudiu em mais um elemento da minha constituição pessoal.

O que basicamente Ad está tentando falar é que o Espiritismo se calcou na ideia de eugenia para poder evoluir e crescer enquanto religião. E, pensando nisso, acredito que essa ligação pode ter sido a catapulta fundamental, o elemento catalisador para que o Espiritismo conquistasse tantos corações e tantas mentes brasileiras.

O substrato social do Brasil é eugenista, e racista por conseguinte. Um traço importante dessa eugenia, dessa mania de limpeza étnica, é a importação de mão de obra europeia para o trabalho no país ao final do século 19. O fim da escravidão foi um dos fatores que motivaram esse movimento. Eis uma pergunta que sempre me ecoou na mente: se os negros escravizados estavam livres, por que tiveram que vir europeus trabalhar aqui? Não seria mais produtivo os próprios “nativos” da terra trabalharem nela?

Seria, em termos puramente econômicos. Daí um elemento importante para que percebamos, enfim, a questão da desigualdade social a partir dos traços raciais; se a questão fosse meramente econômica, os negros poderiam ser contratados para trabalhar nas terras, nas indústrias, nas fábricas; mas foram italianos, alemães, portugueses, holandeses que vieram ser operários aqui no Brasil, porque existia um consenso social de que o preto não prestava.

E esse é um elemento fundamental à eugenia e que aparece também na doutrina espírita. Essa não é uma questão tão nova, achei uma conversa em um fórum espírita onde o texto “Perfectibilidade da Raça Negra”, de Kardec, é debatido. Ressalto o trecho abaixo para a nossa conversa:

Assim, como organização física, os negros serão sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se, sem dúvida, de uma raça inferior, isto é, primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados inteligentes é sempre possível modificar certos hábitos, certas tendências, o que já constitui um progresso que levarão para outra existência e que lhes permitirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores condições. Trabalhando em sua melhoria, trabalha-se menos pelo seu presente que pelo seu futuro e, por pouco que se ganhe, para eles é sempre uma aquisição. Cada progresso é um passo à frente, facilitando novos progressos. (Allan Kardec, Perfectibilidade da Raça Negra. Revista Espírita, abril de 1862.)

Várias das pessoas desse fórum começaram a contemporizar, dizendo que o texto era datado, que isso demonstrava meramente uma falha no comportamento e no entendimento de Kardec e que isso só mostrava o quão humano ele era. Kardec era, sim, humano, mas seus escritos são parte de um legado, melhor dizendo, deixaram uma herança maldita que alimentou o sentimento eugenista no Brasil. Mesma coisa falarmos de Monteiro Lobato, cuja escrita era essencialmente racista e desumanizadora. Esse trecho de “Perfectibilidade da Raça Negra” mostra exatamente o grau desumanizador das pessoas negras para o Kardecismo.

Creio que isso seja um ponto fulcral para a compreensão do Espiritismo como uma religião que adquiriu tantos adeptos no país. O processo de “limpeza étnica” no Brasil se deu na mesma época da ascensão do Espiritismo no mundo, em especial no Brasil – início do século 20. Nessa época desembarcou por aqui uma enorme leva de imigrantes (brancos) e também chegou ao Brasil a concepção kardecista sobre morte, vida, reencarnação. E, neste elemento aqui, há o quesito “evolução”, que justamente representa a hierarquia de almas mais “evoluídas” e almas mais “atrasadas”. O negro seria o corpo portador de uma “alma inferior”, que galgará postos mais elevados do nível cósmico na medida em que fosse reencarnando. E essa reencarnação, suponho eu, vai sendo cada vez mais “branca” ou embranquecida. Aqui reside, de maneira semiótica, um elemento pertinente ao branqueamento social do país: se não houvesse anseios por tornar o Brasil um país menos negro, não teria sido necessário estimular a imigração europeia branca.

Por esses elementos, eu temporariamente concluo que, sim, a cosmogonia kardecista é eivada de racismo e tem elementos de eugenia. O substrato no qual floresceu a religião no Brasil foi propício porque vivemos numa nação fecundamente racista, ainda que ela não admita isso. Acho que só assim, do ponto de vista sociológico, é possível explicar por que o Espiritismo foi tão bem sucedido no país. O movimento dos participantes do fórum espírita, que mencionei acima, vai muito ao encontro de outro movimento socialmente referendado, de “esconder” as mazelas do racismo, de não revelar nossos traços discriminatórios, de sempre afirmar que “racismo não existe” ou que é “uma coisa datada”. Engraçado nessa história toda que Auschwitz também é datado, mas é sempre lembrado como um processo de extermínio genocida. Em se tratando do massacre judeu, é impressionante como tomamos cuidados para evitar que ele se repita. Em se tratando de genocídio negro, isso não existe.

Diga-se de passagem, esse traço da Doutrina Espírita fortemente contribui para o extermínio simbólico do povo negro. Negar-lhe a humanidade, dizer que o negro é uma alma atrasada só reforça em nós (sem vitimismo) o sentimento de inferioridade e o desejo por nos tornarmos cada vez mais embranquecidos. Se o texto de Kardec é “datado”, suas repercussões permanecem atuais. O que Kardec defende num texto do século 19 é perfeitamente aceito em tempos contemporâneos. Me espanta e me enraivece o uso de tal argumento, associado com “Kardec era humano”, como se referendar pseudoteorias como a Frenologia fosse algo que pudesse ser simplesmente deixado de lado. Como se isso, esse racismo científico que calca a religião, não tivesse causado nenhum efeito, nenhuma repercussão no nosso modo de lidar com a vida e com a própria religião. Já é um pouco problemático o conceito de evolução espiritual, quanto mais atribuindo ao negro a posição de inferioridade nessa hierarquia do além.

Em tempo: não duvido da capacidade espiritual de cura do Espiritismo enquanto força metafísica. Não questiono, também, a fé que existe por trás dessa e de outras religiões. Tampouco duvido da capacidade de um Chico Xavier da vida curar pessoas. Não é a questão espiritual que está em foco, mas como ela é “traduzida” para o plano material a partir de um paradigma estruturado num sistema racialmente discriminatório. O que quero ponderar também é que nenhuma religião é intocável, nenhuma religião deve ser tabu; todas têm que ser criticadas nas partes que lhe cabem. Nenhuma religião é infalível, nenhuma cosmogonia é totalmente isenta de falhas, resquícios, preconceitos ou paradigmas porque assim são os sujeitos e as sujeitas que constroem as religiões. O Espiritismo é parte de uma engenharia social eugenista, racista, discriminatória que gera efeitos psicossociais ruins à população negra. Como reverter isso? Talvez começando a assumir a responsabilidade por isso e promovendo uma guinada na tentativa de mudar essa concepção. Mas eu bem sei que isso, se for acontecer, não vai ser nesta encarnação.

Bruno Vieira

Bruno Vieira

Bruno Vieira é jornalista formado pela UFMG. Belorizontino nato, atualmente cursa o mestrado em Psicologia Social na mesma instituição, pesquisando juventude, ação política e políticas públicas. Tem trajetória no terceiro setor em assuntos relacionados a cultura, educomunicação, mobilização social e comunicação comunitária. Integra o coletivo Pretas em Movimento, de BH.