Infame

O Fascínio da Vida Observada: a Minha Vida Tem Graça?

"Mas todo o fascínio pressupõe uma entrega total à ilusão. Há uma falsa crença de que uma vida biografada foi repleta de dias densos e cheios de sentido. Sei que me alimento de promessas vagas".

Por Bruno Henrique M.S.  |  16 de novembro de 2017

“Quem se faz biógrafo obriga-se à mentira, aos segredos, à hipocrisia, ao idealismo e até à dissimulação do que não compreende, porque é impossível atingir a verdade biográfica e, mesmo que a tivéssemos, seria inutilizável…”

                                                 Sigmund Freud – Correspondências – 1936

Três mulheres segurando uma xícara de café. Patti, usa o velho gorro de lã e está sentada sozinha no canto. Gertrude, acomodada em sua poltrona, ouve com atenção as ideias de um jovem pintor. E Susan, diante da mesa repleta de pessoas – gesticula e fala com velocidade.  Três mulheres, três intervalos do tempo. Vidas reais. E no outro lado – o observador – contemplando a cena, fora desse espaço-tempo.

Tenho manias. Algumas, com o tempo, acabaram esmaecidas no caminho; outras persistem e se tornam parte daquilo que julgo serem meus traços. Meu fascínio por biografias é uma dessas que persistem com afinco. Tenho uma real necessidade de estar constantemente adentrando a sala de um personagem que existiu (ou existe); vasculhar seus dias, revirar suas malas e descobrir seus pequenos momentos mágicos: Patti Smith guardando as pontas cortadas do seu cabelo em um envelope.

Talvez por ter nascido em uma cidade pequena, onde podia ver os limites da cidade, imaginando um outro mundo bem maior e cheio de histórias. Ou talvez por ser o filho caçula, e com a diferença de idade que me impedia de brincar com meus irmãos. Eu passei uma infância com os olhos na janela.

Gertrude Stein, Susan Sontag e Patti Smith são mulheres com vidas não convencionais – e insisto em acreditar – singulares. Gertrude, escritora e mecenas dos grandes artistas de Paris do início do século XX. Susan, a grande intelectual americana, que colecionava botas de cowboy. E Patti, a roqueira punk que fez sucesso nos anos 70 e hoje escreve livros e tira fotos. Cada qual segurando a xícara de café a sua maneira.

Mas todo o fascínio pressupõe uma entrega total à ilusão. Há uma falsa crença de que uma vida biografada foi repleta de dias densos e cheios de sentido. Sei que me alimento de promessas vagas. Sou um observador (não sei se voyeur seria o termo mais adequado) que talvez padeça de uma doença: gestos fracos. Constantemente, vejo meus gestos perderem a força, resvalando para um território de apatia e falta de vontade. O desejo da escrita perde-se no vácuo; o momento do café dissipa-se na insignificância. Ficando apenas o terror de dias ocos.

É nesse momento que a vida biografada surge como irresistível remédio: ela traz o mágico poder de dotar o mundo com matéria e símbolo. Palavras e imagens começam – aos poucos – a sair das páginas do livro, em um ato de pura mimese, para também construírem a minha paisagem de observador. Então, as horas enchem-se de uma matéria vinda de fora, do outro. O contorno irrompe o vazio. E num frêmito de segundo, a minha xícara irrelevante ganha peso e forma.

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S.

Bruno Henrique M.S. trabalha com comunicação, mas sente-se vivo nos cômodos da arte. Tem dificuldade para preencher mini currículos. Prefere inventá-los.