Infame

Um, Dois ou Dez Minutos de Silêncio Pelas Crianças. Agora.

"Além de serem subordinadas a um sistema de ensino que não acolhe suas potências de indivíduo, suas qualidades originais cognitivas e criativas, crescem sob olhares de outras (velhas) crianças – também mal criadas desde seus tempos – que pouco conhecem as dimensões dos limites, quanto mais a conversa e tolerância".

Por Edhson J. Brandão |  14 de novembro de 2017

Shh! Para, observa e olhe. Faça tudo em silêncio e não atrapalhe o momento. Vem comigo, responda – mas não fale -: onde está a criança que convive próxima a você? Consegue vê-la? Ouvi-la? Está por perto? Longe? Sabe o que faz? Com quem está? Se foi, que horas volta? Ela volta? Volta? Para onde? Onde você a leva? Não leva? Quem a leva? Por quê? O que há? Conseguiu responder a tudo? Em silêncio? Tudo bem. Nem tanto.

Não estou lembrando outro momento tão culminante na história pós-moderna brasileira quando, quietamente, as crianças pediam socorro como o agora. A infância está gritando. Ninguém ouve. Na verdade, escutam sim: o que querem, não o preciso.

A geração que cresce e descobre o mundo precisará de um esforço maior para explicar seus medos e aflições em suas juventudes e vidas adultas. O que há? Não conhecem sua servidão. Não fazem ideia de que seus franzinos corpos e frescas almas estão sendo molestadas diariamente como moeda eleitoral em um sistema político de indução à ignorância e bestialidade. Sim. Há uma violência que não marca. Existem, também, agressões cujos hematomas não são expostos. Ainda.

Além de serem subordinadas a um sistema de ensino que não acolhe suas potências de indivíduo, suas qualidades originais cognitivas e criativas, crescem sob olhares de outras (velhas) crianças – também mal criadas desde seus tempos – que pouco conhecem as dimensões dos limites, quanto mais a conversa e tolerância.

As mais ricas: trancadas às rotinas de promissores vestibulandos; as mais pobres: livres, em parte, para a marginalidade e a ignorância.

As escolas: mediadoras da educação, saturadas de pendências sociais e afetivas. Entre o Estado e a família. Reféns da precarização ou mercantilização do ensino. Pais invisíveis, mães solteiras, avós adotivas e tias criadeiras encaram o conflito de valor. A escola, de novo, é bem intencionada. Seus programas são bons. Mas – tem sempre um milhão de mas -, não efetivam seus compromissos. O Estado quer atendimento: lota turmas, constrói dois ou três prédios e enchem de gente dentro. As famílias: no trabalho, dando duro, ralando joelhos e curvando ombros para a comida, o leite, a roupa, o tablet e o Face.

Não bastasse esta injúria, agora a imagem das crianças é usada despreocupadamente para denúncias sociais, censura de exposições e fechamento de museus. Encontraram, de novo, na infância a veia certeira para levar toda uma sociedade a um reduto de ódio e intolerância com finalidades políticas. Incriminam as artes e os artistas, porém, esquecem-se de que o pedófilos, em suas maiorias, habitam as instituições privadas. Estas pessoas apontam quadros e performances ao mesmo tempo em que permitem a audiência de filmes, novelas e clipes musicais onde o corpo é erotizado. Filmam, compartilham a figura destas crianças de modo desenfreado sem qualquer preocupação com a exposição de menores. Agora abraçam com ECA como uma bíblia. O Estatuto que desde sua criação e vigência é alvo de ataques pela comunidade de pais e responsáveis. Segundo eles, o documento é um grande obstáculo na educação de seus filhos uma vez que torna a violência aos infantes crime.

A criança dos anos 10, no segundo milênio, surge como isca para desestabilizar a atenção das massas. Serve de lenha para alimentar o fogo que move locomotivas rumo aos trilhos do poder. Enquanto os dedos apontam para os “novos pedófilos” e supostos “abusadores da infância”, o menino no Maranhão dormiu em uma cela pronto para o abate como pagamento de serviços adultos. A menina que andava pelo mercado foi encurralada e teve dedos de estanho por baixo de sua saia sem saber porquê. O garotinho do terceiro ano sai da escola e já fica na rua andando com adultos até uma hora da manhã. Volta para a escola com todas os gestos e diálogos sexuais a que deve ter acesso e aplica aos colegas assumindo, então, o papel de opressor. Os professores, coordenadores e diretores perguntam onde ele está aprendendo isso porque reproduz com tanta assertividade e frequência. Ele ri, se esconde, não responde. A escola aciona a família, os órgãos sociais e nunca há resposta. Há uma espera, longa espera e paciência porque sempre existem casos mais graves e que ocupam maior tempo. Contudo, os olhares estão onde? Na internet. A comoção gerada por oportunistas cega o corpo social que vocifera querendo a volta da moral e do controle bélico.

Muita gente quer a cabeça da mãe e as ruínas de um museu que permitiram a menina tocar o corpo nu. Mas essa gente não quer aproveitar o momento e encarar o debate ético que se torna propício. Essa gente dispensa qualquer oportunidade de diálogo.

O povo quer a proteção das crianças porque são o futuro do Brasil – e alvo de seu dinheiro, de suas contas. Então, se esquecem de onde elas estão e do que precisam.

Os meninos da creche em Minas Gerais estão mortos com seus corpos queimados. Agora cabe a terra o trabalho final de consumir seus ossos. Ninguém sabe o nome delas. Quem trocou a foto do perfil?

Por isto: SHH! O silêncio. Estamos de luto pela geração queimada. Estamos de luto porque não há luta. Estamos todos de luto, não estamos?

 

Inspirado pelo artigo de Eliane Brum publicado no El País em outubro de 2017.

Edhson J. Brandão

Edhson J. Brandão

Edhson J. Brandão, 1989, paulistano, exilado no ABC. Contista e novelista, explora os relevos da prosa porque não soube ser poeta. Publicou Letra de Mão (Giostri, 2017), Ephemeroptera (Penalux, 2017) e está online no tumblr Peregrino de Mim. Outras coisas e nada mais.