Certamente essa foi a primeira pergunta que alguém fez sobre você. Dentre tantas possíveis, o gênero. Mas, embora muita gente repita que ser menina é sinônimo de ter vagina (e o mesmo vale para ter um pênis e ser menino), os indícios de que esta pergunta não é apenas uma maneira pudica de indagar o genital de um bebê estão por toda parte.
Simone de Beauvoir nos ajuda a compreender. A pensadora francesa não deixou herdeiros, mas tivesse passado por uma gravidez, certamente teria ouvido esta questão, ao que possivelmente teria respondido que o gênero do nosso hipotético bebê não está determinado por qualquer ordem da Biologia: “não se nasce mulher, torna-se”.
Na verdade, o genital do bebê pouco importa. O que nos interessa de fato é aquilo que supomos ser determinado pelos genitais. Nós não pretendemos estabelecer com o recém nascido qualquer relacionamento que envolva diretamente seus genitais, mas ao saber se aquela pequena pessoa tem no meio das pernas um pênis ou uma vagina, magicamente descobrimos se devemos comprar babador azul ou rosa, se projetamos para o futuro uma bailarina ou um engenheiro, se brincaremos de carrinho ou de boneca, se estamos lidando com uma criatura que deve ser protegida ou estimulada a desbravar o mundo. Dentro do vazio identitário que projetamos no bebê, conhecer o gênero – não o genital, mas o gênero – nos dá pistas preciosas a respeito de que tipo de comportamentos podemos esperar da criança e que tipo de relação estabeleceremos com ela.
De fato, é difícil não saber o gênero de alguém – não o sexo, o gênero. Muitos de nós já passamos pelo constragimento de comprimentar uma mulher supondo ser ela um homem ou vice-versa, ou perguntar aos pais de uma menininha “qual o nome dele“. Mas quando sentimos falta dessa resposta, é porque as roupas, gestos e afinidades nos confundem – mas não porque deixamos de perceber o genital.
Assim, se o interesse por trás da pergunta tem a ver com comportamentos, seria mais preciso perguntar algo na linha de “como devo tratar esta pessoinha que está chegando?” do que “qual a anatomia do seu bebê?”. E se, para muitos, essas duas perguntas são formas distintas de descrever o mesmíssimo fenômeno, Beauvoir e seu existencialismo aplicado às questões de gênero vem nos explicar que um cromossomo, embora exerça sobre nós enorme influência, não nos determina.
Na primeira parte de O Segundo Sexo, a filósofa francesa faz um estudo minucioso sobre os machos e fêmeas das mais variadas espécies. Chega a ser cansativo ouvi-la falar sobre o sexo das bactérias, dos celenterados, dos anfíbios, dos répteis, das aves, até finalmente chegar nos mamíferos e no bicho-homem (alcunhado assim, diria ela, por conta do machismo impresso na linguagem). Beauvoir deve ter antevisto a crítica, recorrente e infundada, de que seu pensamento nega a Biologia, e dedicou-se intensamente a afirmá-la. “Concordaremos a respeito de um certo número de fatos”, ela diz, oferecendo aos achados dos biólogos o crédito que até hoje acusam-na de negar. Mas ela tampouco permite a este campo do estudo se encarregar de nos definir por completo: “para nós, a mulher define-se como ser humano em busca de valores no seio de um mundo de valores, mundo cuja estrutura econômica e social é indispensável conhecer”.
Assim, Beauvoir aponta o equívoco que sustenta nosso anseio por descobrir se é menino ou menina. A pergunta pressupõe que há uma essência determinada pela Biologia. É como se disséssemos que, ao conhecer a anatomia do bebê, saberemos automaticamente uma série de outras coisas sobre ele ou ela. “Se tem pênis”, pensamos, “é menino”, e ser menino significa que tem mais chances de gostar de futebol, que será arteiro, gostará de sexo (com mulheres), será agressivo, etc. Essas derivações, entretanto, erram ao atribuir à Biologia elementos que são do campo social.
Qual o sentido, por exemplo, de relacionar um cromossomo Y, com sua decorrências anatômicas e hormonais a algo tão evidentemente cultural quando as ciências exatas? O que poderia haver na testosterona – que é a mesma hoje e há mil anos, e aqui e na Índia, e em pessoas ricas ou pobres – que sustente o apreço dos homens pelos polêmicos mamilos? Ora, fosse o gosto masculino determinado por algo estável como um hormônio, não haveria culturas nas quais as mulheres não cobrem os seios.
Não se trata, portanto e absolutamente, de negar a influência da Biologia, mas de questionar seus limites. E aí é que entra a beleza do existencialismo feminista de Beauvoir. Se a Biologia determina que só a fêmea humana pode engravidar, isso não significa que estejamos condenadas à gestação. Ao contrário de um cachorro, a fêmea humana, quando no cio, se vê diante da irremediavelmente possibilidade de escolher se vai se movimentar em direção à maternidade. Os hormônios existem e impõem limites intransponíveis à sua existência, mas eles não a determinam. A mulher não está fadada à maternidade ou a qualquer destino. Veja o tamanho da liberdade que o existencialismo nos oferece ao afirmar que é impossível prever de antemão o resultado de nossas trajetórias em um mundo constituído – não só, mas também – por valores mutáveis e escolhas individuais! É esta a escola de pensamento que Beauvoir aplica ao gênero, rebatendo qualquer destino que a tradição queira imputar às mulheres.
Como diria um certo amante de Beauvoir, estamos todos condenados à liberdade, porque uma vez lançados ao mundo, somos responsáveis pelo que fizermos. Se por um lado essa constatação pode ser angustiante, por outro ela nos diz que, meninos ou meninas, podemos ser o que quisermos ser.