Infame

Três Marias: Um Estupro, Um Aborto, Uma Vida

"Maria 1 quer abortar. Planeja terminar a faculdade; (...). Maria 2 quer abortar. Não tem condições de criar outro filho; (...). Maria 3 carrega no ventre o fruto de um estupro. Descobriu no posto de saúde, o médico pediu o exame. Mas disseram: não pode abortar. Tem que ter o filho. É a lei".

Por Natalia Timerman |  10 de novembro de 2017

Maria engravidou. Maria não engravidou sozinha. Não se engravida sozinha: por meios naturais, é necessário um homem para que uma mulher engravide.

Maria são três.

Maria 1 é rica. Engravidou do namorado, por descuido. Uma vez só sem camisinha, vai, ele disse; ela cedeu, tava tão gostoso.

Maria 2 é pobre. Engravidou do namorado, por descuido. Uma vez só sem camisinha, vai, ele disse; ela cedeu, tava tão gostoso.

Maria 3 também é pobre. Foi estuprada. Sem camisinha, claro. Teve medo, não contou para ninguém. Era virgem.

Maria 1 está na faculdade. Namora há pouco tempo, alguns meses, só. O namorado vai fazer intercâmbio. Ninguém quer mudar os planos.

Maria 2 há uns anos terminou o fundamental. Está desempregada há sete meses; consegue, às vezes, uns bicos de diarista. O namorado pinta prédio; ela tem medo de que caia do andaime. Se caiu, ela não soube. Ele sumiu depois da gravidez.

Maria 3 está no sétimo ano. É boa aluna. Na sua família, é a que chegou mais longe. Seu sonho é terminar o ensino médio.

Maria 1 quer abortar. Planeja terminar a faculdade; não estava em seus planos criar um filho sozinha. Quer uma família mais pra frente. Com a profissão já garantida.

Maria 2 quer abortar. Não tem condições de criar outro filho; já tem dois, e tá difícil. Do futuro, só deus sabe.

Maria 3 carrega no ventre o fruto de um estupro. Descobriu no posto de saúde, o médico pediu o exame. Mas disseram: não pode abortar. Tem que ter o filho. É a lei.

Maria 1 pediu dinheiro pro pai. Foi a uma clínica que nem parecia clandestina. O namorado acompanhou. Deu tudo certo.

Maria 2 perguntou pras amigas. Agulha de tricô, disseram. Sangrou e doeu. É assim mesmo, a amiga falou.

Maria 3 continuou grávida do homem que a estuprou.

Maria 1 continuou a faculdade. O namorado foi pro intercâmbio. Depois voltou, mas cada um já tinha tomado seu rumo. Seguiram amigos. Ela se formou, ele também.

Maria 2 continuou sangrando em casa. Teve medo de ser presa se fosse pro hospital.

Maria 3 saiu da escola.

Maria 1, oito anos depois, teve gêmeos. É feliz.

Maria 2 morreu.

Maria 3 é mãe de um filho que não tem pai na identidade. O homem que a estuprou. Nunca conseguiu namorar. Não teve mais filhos. O que teve, foi preso aos 18. Morreu na cadeia.

Marias são infinitas. Maria somos todas nós.

Natalia Timerman

Natalia Timerman

Natalia Timerman foi uma criança que disse à bibliotecária da escola querer ler todos os livros do mundo. Na mesma época, aos adultos que lhe perguntavam o que seria quando crescesse, respondia, sem hesitar, que escritora. Virou médica, virou psiquiatra, virou mestre em psicologia. Virou ela, adulta; mas ainda quer ler todos os livros do mundo. Sofre com essa e outras impossibilidades, e ainda jura que vira escritora.