Infame

“A Tela São os Outros”: Somos Pescadores de Defeitos Alheios?

“O inferno são os outros” é uma frase sartreana que se refere, entre outras coisas, aos nossos encontros com as outras pessoas. Ao choque entre subjetividades que limitam mutuamente suas liberdades. E a contradição nessa história é que, ao mesmo tempo, dependemos dos outros para nos dizer quem somos. Esses outros nos forçam a pensar sobre os limites e as consequências de nossas atitudes. Nos obrigam a pensarmos sobre quem somos na fila do pão.

Por Edvaldo Colen |  09 de novembro de 2017

Um hábito que trago de longa data é o de observar os outros nos espaços públicos. Há tantas coisas acontecendo ao mesmo tempo, tantas interações, tantas histórias. Isso aguça minha criatividade de diversas formas. Também mantém aceitável em mim o nível daquele narcisismo típico da modernidade, totalitário, identificado com a liderança, e que desconta nos diferentes as frustrações de sua submissão cega à autoridade.

Não é muito comum o costume de dar-se conta de que cada pessoa com quem cruzamos na rua tem uma vida repleta de experiências. Aquele tiozinho, usando um boné, sentado sozinho vendo o mundo passar. Quantos amores se foram, quantos permaneceram? E aquela prima com quem não tem mais contato? Quantos amigos se perderam no caminho? Mora perto? Nasceu longe? Como foi a escolha daquele boné? Foi presente? Foi caridade? Tem netos? Filhos? Tem alguma conexão com aquele lugar? Quais notícias naquele jornal dobrado no colo vão trazer à tona boas memórias? E as ruins? Qual o nome da professora que o ensinou a ler? Cada pessoa é um universo imenso demais para ser ignorado. Mas fazemos isso.

Andamos pela calçada como se ao nosso redor estivessem figuras cenográficas de papelão. E quando não desumanizamos as outras pessoas tornando-as objetos inanimados, tendemos a apontar suas falhas. É como se cada ponto negativo que damos para o outro nos colocasse um passo mais próximo daquela cenoura na ponta da vara que perseguimos a vida inteira. O importante é percebermos que nada do que vemos é realidade. As pessoas são como telas em que projetamos o que sentimos, o que pensamos. Receptáculos nos quais colocamos nossos medos, preconceitos, limitações. Egocêntricos, falhamos em compreender no que vemos o que é nosso e o que alheio. Somos a constante do universo, que deve se curvar e se moldar à nossa vontade.

“O inferno são os outros” é uma frase sartreana que se refere, entre outras coisas, aos nossos encontros com as outras pessoas. Ao choque entre subjetividades que limitam mutuamente suas liberdades. E a contradição nessa história é que, ao mesmo tempo, dependemos dos outros para nos dizer quem somos. Esses outros nos forçam a pensar sobre os limites e as consequências de nossas atitudes. Nos obrigam a pensarmos sobre quem somos na fila do pão.

É ridiculamente fácil encontrar os defeitos alheios, nos carrascos de nossa autonomia, naqueles em que geralmente colocamos a culpa por nossos fracassos. O desafio é encontra-los diante do espelho, assumirmos responsabilidades por nossas escolhas e parar com o autoengano. Só assim cai a ficha de que todas as narrativas que criamos para os outros, num cúmulo de autocentramento, são histórias sobre nós mesmos.

Que difícil é distribuir elogios, encontrar perfeições naquelas pessoas com as quais nos encontramos, reconhecer que elas podem ser melhores que nós em muitos aspectos, não tentar diminui-las para nos sentirmos seguros e maiores. Numa época em que se fala tanto em autoestima ou amor próprio, eu me pego pensando se isso seria realmente necessário se as pessoas praticassem o amor e o respeito ao próximo. O risco é definharmos, assim como Narciso, fixados numa imagem irreal de nós mesmos. Você conseguiria, por um dia inteiro, somente focar e falar sobre as qualidades dos mundos que te cercam? Me diga o que vês no outro e saberás quem és.

Edvaldo Colen

Edvaldo Colen

Edvaldo “Ed” Colen é mineiro nômade residente na capital paulista. Formado em psicologia, tem interesses caleidoscópicos e há anos se dedica à vida acadêmica e a analises críticas da sociedade. Nas horas vagas é sommelier de pessoas e geek metido a chef.