Quando eu me mudei aqui pra praça o Reinaldo era meu vizinho de frente. Eu não tinha cortinas na janela e a gente passava o dia se notando. Cada um em seu trabalho. Eu na sala escrevendo. Ele na calçada guardando carros em frente à sua arquibancada-cama.
Eu ainda não sabia o nome dele, nem ele o meu, mas já conhecíamos nossos hábitos. Ele sabia que lá pelas dez eu aparecia na janela pro primeiro cigarro com café antes de sentar na frente do laptop. Eu sabia que ele acordava com o sol e dobrava o colchonete e enfiava o colchonete atrás da árvore e que tirava de trás da mesma árvore seu radinho que só tocava canções de amor.
O Reinaldo era magrelo, alto e muito vaidoso. Lábios pintados, umbigo de fora, top colado no corpo de caveira e uma saia apertando a quase não bunda. No frio, uma jaqueta jeans bem menor que seu mais de metro e noventa.
Quando eu saía na janela pra fumar o primeiro e todos os outros cigarros do maço diário, o Reinaldo olhava pra cima mas logo desviava os olhos e seguia dublando Roberto, Shakira e Xororó na sua vassoura-microfone. Quando ele não estava cantando, a vassoura voltava a ser vassoura e o Reinaldo passava horas varrendo, em vão, do seu quintal de asfalto, folhas que o vento teimava trazer de volta.
Quando dava uma e meia da tarde eu descia pra almoçar. Saía do prédio sem porteiro e num vício automático acendia outro cigarro pra não caminhar sozinho. Nessa hora o Reinaldo já tinha comido. A Dona Dalva, do primeiro andar aqui do prédio, sempre levava pra ele um prato ao meio-dia.
Quando completei três meses morando por aqui, nos apresentamos. Eu, saindo pro almoço, senti o vento do ser que atravessou a rua às pressas. Moço, moço! Me dá um cigarro? Eu dei. Acende pra mim? Acendi. Você mora aqui né? Olha, eu tô varrendo a praça que é mó sujeira isso aqui! Você tem um real? Eu disse que não. Disse, me chamo Thiago e você? E busquei o olhar dele, que, até então, por hábito de invisível, não tinha olhado pra frente.
A partir desse primeiro contato todas as vezes que eu saía do prédio já esperava o Reinaldo vir correndo. Thiago, Thiago! Me dá um cigarro? E eu dava, e na sequência ele pedia um real e eu dizia que não tinha.
Lá pela vigésima vez eu disse olha, Reinaldo, a gente é vizinho e eu não vou te dar dinheiro. Ele ficou quieto por uns segundos com cara de tá bom e na sequência desembestou a falar. É, eu tô morando aqui. Mas eu deixo tudo limpo, que aqui anda uma sujeira só. Tem que manter limpo né, que onde eu morava antes era difícil, eu sou usuário de crack e faz mais de ano que eu não uso! Mas se eu ficasse lá eu tava usando e eu não quero mais usar e também agora aos sábados eu tenho aula de cabelereiro lá perto da Batata e é por isso que eu nunca tô aqui sábado e também porque no sábado tem a feira e aí vem uns caras que querem o ponto e eles não gostam que eu fique.
Sem parecer que ia parar de falar ele disse tchau, Thiago, tem um carro saindo ali, e se foi meio pulando pra pedir um trocado pra senhora do carro grande.
Lá pelas oito da noite, eu fechava o laptop e descia pro boteco da esquina. O Reinaldo nunca estava lá nesse horário, mas sempre estava às onze, hora que eu voltava, ele, já deitado, ou tomando um resto de cachaça da garrafa esvaziada, com cara de medo, enrolado no cobertor-escudo. Eu fazia um sinal com a mão mas ele nunca respondia.
Nas manhãs ele estava de novo alegre, varrendo e cantando e eu ia pra janela a cada cigarro e quando eu descia pra almoçar ele vinha correndo me pedir um e às vezes dizia que hoje a Dona Dalva não veio com o almoço e pedia pra eu tocar a campainha pra saber se ela estava bem. E olha, Thiago! Tô varrendo que é pra manter tudo limpo aqui.
Depois de um tempo passou a me pedir pra carregar a bateria do radinho dele na minha casa. Se eu demorava mais de uma hora pra trazer de volta eu via ele me buscando na janela e quando eu aparecia pro cigarro ele gritava Thiago, não esquece meu rádio!
E às oito da noite eu saía pro bar da esquina e o Reinaldo não estava. Às onze, quando eu voltava, ele estava enrolado no cobertor com cara de medo pós cachaça a garrafa vazia ao lado. E passou um, dois, três, quatro meses dessa rotina. As madrugadas silenciosas, o meu último cigarro lá pela meia noite, o Reinaldo dormindo sono pesado.
Até que, numa madrugada quente, eu acordei inquieto com gritos invasores de sonhos. Corri pra olhar da janela e lá estava o Reinaldo, a vassoura-espada em punho, cercado por três homens que gritavam vai morrer viado! Mas que não conseguiam chegar perto daquele Reinaldo agora guerreiro, gritos de fera ferida vem que arrebento vocês seus coisa ruim! Seus nóia! Sai daqui! Sai daqui! E a vassoura-espada girando no ar e um pedaço dela que saiu voando quando acertou um dos invasores na cabeça. O cara caiu meio tonto, mas levantou e gritou, eu volto pra te matar! Foram embora. Eu larguei o telefone que já ia discando pra polícia.
Pensei em descer pra falar com o Reinaldo mas em dez segundos ele estava enrolado no cobertor-escudo com cara de raiva e eu achei melhor esperar a manhã seguinte.
E a manhã seguinte veio, e o cigarro na varanda e o Reinaldo ali deitado no colchonete ainda esticado na arquibancada-cama, cobertor-escudo, vassoura-espada-microfone muda partida ao meio, as folhas sossegadas.
Resolvi manter a rotina, ele sabe que uma e meia eu desço, desci um pouco antes, quando vi que a Dona Dalva levou a comida pro Reinaldo catatônico. Dona Dalva cabisbaixa voltou pra dentro o pote de comida cheio.
Parei na calçada, acendi o cigarro companheiro do caminho e esperei o vento do ser atravessar a rua, mas ele não se moveu. Atravessei eu e sentei ao seu lado, mantendo uma distância não ameaçadora , sem falar nada, eu sei que ele sabia que eu vi tudo da janela. Eu olhei pra ele mas continuei quieto. Vi o rádio estraçalhado e perguntei: foram eles que quebraram? Ele disse foi, sem olhar pra mim, querendo ser invisível outra vez. Querendo que eu não soubesse o nome dele. E continuou, não adianta varrer. O lixo sempre volta.
Naquela noite quando eu cheguei do bar da esquina, o Reinaldo não tava mais lá. Nem no dia seguinte, nem a semana toda. Eu torcendo pra ele ter fugido, a Dona Dalva pensando no pior.
As manhãs de cigarro na janela os tragos preocupados. Uma, duas, três semanas. Até que um dia ele voltou. De muleta, a perna enfaixada. Disse que foi até o centro e que foi atropelado. Que foi lá pra comprar outro radinho, mas que a moça que vendia não estava mais.
Nós fumamos o último cigarro juntos. Ele me pediu um real. Eu disse que não tinha. Ele veio pra dar tchau. E nunca mais apareceu.
(Baseado em uma história real. Os nomes Reinaldo e Dona Dalva são fictícios para preservar os envolvidos)