Infame

Império da Autoria: “Para Quem, Afinal, Você Precisa Ser Produtivo?”.

"Ocorre que todos desejam e se pretendem produtores e realizadores geniais. Enquanto potenciais descobridores, somos bombardeados por sonhos de ideias brilhantes, criações de negócios lucrativos ou invenções geradoras de tendências. Performances ou personalidades são respeitadas ou admiradas pela projeção de suas criações. Como diriam alguns estudantes que sigo encontrando pelas salas de aula, “quero ser respeitado por algo que eu faça na vida”.

Por Eder Camargo |  07 de novembro de 2017

Usuários de telefones móveis que somos, nos sentimos com algum dom premonitório ao passar os olhos pelo identificador de chamadas quando recebemos alguma ligação, seja ela esperada ou não. Esse recurso, que hoje se tornou banal, alterou profundamente o uso de dispositivos de comunicação de atendimento imediato. Talvez poucos saibam, mas o inventor da Bina foi um brasileiro, que morreu há pouco tempo sem nunca ter recebido nada por seu invento, mesmo obedecendo às regras de patente estabelecidas.

Habitamos o império da autoria e sonhamos com reconhecimento. Nutrimos a expectativa de sermos laureados em vida por grandes realizações. No entanto, no jogo social estabelecido de produção da vida, o reconhecimento é um prato servido de modo desigual e tantas vezes indiferente à relevância ou origem das invenções e autorias.

Há alguns anos, uma iniciativa do governo brasileiro de “licenciamento compulsório” (termo utilizado para designar o rompimento dos direitos de propriedade de uma determinada patente) alcançou projeção mundial. Para seguir oferecendo o tratamento público aos portadores de HIV, o Ministério da Saúde autorizou a produção nacional de medicamentos patenteados por indústrias farmacêuticas de outros países. Essa medida, ainda que não apenas ela, colaborou para a diminuição pela metade da projeção de infectados nos 10 anos seguintes e melhorou a perspectiva de vida para milhões de portadores do HIV.

Os dois acontecimentos citados apontam para a falência do sistema de valores assentado na idealização da vida criadora e produtiva como a conhecemos. O primeiro pelo aspecto negativo, o segundo pela sua dimensão positiva e virtuosa. Exceções que confirmam a regra, pode-se argumentar. Contudo, antes de defendermos o modo como a vida está estabelecida, poderíamos destacar o que essas experiências apontam: não há recompensa justa para o trabalho e nem sempre as regras competitivas devem ser respeitadas.

Quando e em que condições as regras de criação são respeitadas? Um outro caso pode enriquecer nossa reflexão. Na segunda metade do século XIX, em meio à Segunda Revolução Industrial, quando, entre outras coisas, o uso da borracha se tornava algo de extrema importância produtiva, um comerciante inglês navegando pelos afluentes do Rio Amazonas comprou 20 mil sacas de sementes de seringueira. Três décadas depois, a região que mais produzia borracha natural no mundo era o Sudeste Asiático – vale dizer que ainda é! – pois esse foi o destino das sementes de seringueira.

No apreço à competitividade, não se medem esforços para a conquista de vantagens. Na verdade, o Império da autoria está à serviço da produção, da utilidade. Mas de qual produção ou utilidade estamos falando? Não existe um único modo de se produzir. Tecnologias são muitas, tantas quantas as culturas e sociedade existentes. Afinal, tecnologia é um objeto ou uma relação que estabelecemos com as coisas? Onde está o reconhecimento às sociedades que desenvolveram o cultivo da seringueira? Quem irá valorizar as contribuições esquecidas ou relegadas?

A áurea da genialidade e da criação está tão entranhada em nosso imaginário que destacar o caráter injusto das normas se tornou, por si mesmo, uma atitude vitimizadora, uma espécie de revanche dos incompetentes que não conseguem, pelo trabalho árduo, alcançar o status de pessoas reconhecidas e bem sucedidas que é partilhado por alguns poucos e mesmos produtores.

Ocorre que todos desejam e se pretendem produtores e realizadores geniais. Enquanto potenciais descobridores, somos bombardeados por sonhos de ideias brilhantes, criações de negócios lucrativos ou invenções geradoras de tendências. Performances ou personalidades são respeitadas ou admiradas pela projeção de suas criações. Como diriam alguns estudantes que sigo encontrando pelas salas de aula, “quero ser respeitado por algo que eu faça na vida”.

Nos nossos dias ninguém se contenta muito com a condição de coadjuvante. Que dizer então de alguém que se baste como ouvinte ou mesmo um espectador; são condições de um zé ninguém, de alguém que “não deixará sua marca no mundo”. Todos somos convocados, diariamente, a criar algo, a fazer sua própria história e assim a da humanidade, a ser, enfim, inaugurador de alguma coisa.

Afinal, quem se beneficia da idealização do inventor? Nos tornamos voyeurs de personalidades destacadas, devoramos intimidades exemplares, nos deliciamos com as idiossincrasias de gênios, na expectativa de nos infectarmos com a ambrósia da criação e nos fazermos – afinal, nós também podemos! – geniais e autores de algo renomado. Como se ao escarafunchar a biografia de alguém que admiramos, pudéssemos aprender o que o tornou admirável: enfim, qual o segredo para ser genial?

Nos cercamos de especialistas, também chamados de intelectuais, que sempre nos apontam qual a necessidade da vez a satisfazer. Religiosamente, nos confessamos a profissionais tidos como responsáveis pela manutenção dos esgarçados laços sociais que nos envolvem. Sendo destinados ao sucesso, a sociedade nos disponibiliza todos os recursos e condições para que realizemos nossa inevitável tarefa de preservação da espécie: assumir nossa condição de autores.

Como viver em um mundo onde todos idealizam a condição de protagonista? Todos temos, dizem, ao menos um quarto de hora de fama. Mas quem se basta com 15 minutos? Ouvimos desde pequenos que nascemos para vencer, que somos especiais, que o mundo estará a nossos pés quando tivermos foco em nossos sonhos. Basta ter disciplina e desejar, dirá o catequista de plantão.

Sintomaticamente, nessa espécie de canibalismo consensuado, esquecemos – ou desprezamos? – experiências que ativam práticas mais solidárias, como invenções coletivas ou atividades de escuta. Desse modo, se perpetua a persuasiva imposição de um mesmo modo de sentir e perceber a realidade. Será isso o imperialismo?

Ainda assim, há uma busca de horizontes com iniciativas de financiamento coletivo, coworking ou propostas alternativas de regime de propriedade como Creative Commons ou copyleft. Todavia, uma disponibilidade ao fracasso, ao tédio e à frustração precisa ser acessada. Para quem, afinal, você necessita ser produtivo? Por que você tem que ser genial? Ou dito de modo mais direto: o que te move no império da autoria?

Eder Camargo

Eder Camargo

Eder Camargo é professor e historiador, além de colecionador de ideias de pesquisa não enfrentadas. Acumula experiências como autor de materiais de ensino, mobilizador comunitário e pesquisador de histórias locais.